quinta-feira, 27 de outubro de 2011

ESCOLA PARA QUEM PRECISA


Foi inaugurado na semana passada o Centro Cultural Palace, ligado à Secretaria Municipal de Cultura, com o prédio do antigo Hotel Palace totalmente restaurado.
E hoje estive lá para assistir à entrega dos prêmios do I Concurso Literário de Prosa e Poesia dos alunos da Escola Estadual Otoniel Mota. Além da apresentação dos estudantes vencedores houve uma apresentação musical coordenado pelo pianista Gustavo Molinari.

Pelo que tenho observado de longe, uma das pessoas que está por trás dessa ideia de levar os adolescentes para a literatura é a professora Heloisa Martins Alves. Eu já conhecia um pouco do empenho da professora quando, na Feira do Livro de RP do ano passado, assisti ao lançamento do livro "Combinando Palavras com Murilo Mendes", antologia escrita pelos alunos da escola Otoniel Mota. Na ocasião alguns poemas dos autores-estudantes foram lidos para a plateia, e eu fiquei fascinada com o poder das palavras, dos versos, da organização de ideia. Fiquei ali, parada, meio boba, achando que aqueles versos não deixavam nada a desejar para um poeta maduro.

Hoje à noite foi assim de novo. Os jovens conseguem fazer coisas que nos prendem a atenção. Por mais que muitos repitam que estimular a criatividade é bom para a segurança pública (porque "tira as crianças da rua"), eu gosto de ver que ainda existem pessoas que pensam diferente: não se trata de manter as crianças distraídas ou ocupadas, trata-se de auxiliá-las no caminho rumo ao inevitável: a vida adulta. E nesse auxílio a arte tem sim um papel muito mais complexo do que distrair... No contato com a arte o pensamento e o sentimento ganham forma, se formalizam, se estabelecem como plataforma para a visão de mundo e para projetos futuros.

Contrariando o pessimismo de toda uma sociedade, alguns educadores seguem em frente, passando por cima de todo tipo de carência e descaso. Simplesmente fazem o que é preciso.


na foto de Roberto Galhardo, a fachada do Palace.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Escola para quê?


Alguém sugeriu que a escola deveria ser extinta. Teve também alguém que sugeriu que a escola deveria mudar, romper com alguns padrões que já duram há anos, como a posição das carteiras enfileiradas. Alguém já propôs que os pedagogos com mentalidade do tempo da palmatória deveriam ser identificados e recusados no sistema de ensino. E que o mesmo deveria acontecer com os professores que devoram métodos de adestramento para ensinar, como se lidassem com animaizinhos prodígios. E outros ainda mais nervosos sonham com o tempo em que a Escola descerá do salto alto e dará o braço a torcer para a Televisão. (Estes mesmos entusiastas nervosos têm propostas nervosas também para o modelo de Televisão).

Mas no Brasil, qualquer fórmula para a Educação, gerada no laboratório da revolta, está condenada à gaveta. Se por um lado, esse arquivamento garante ao sistema um alívio (afinal, nada mais seguro para a ordem do que uma classe de alunos repetindo em coro qualquer coisa que a professora mande), por outro lado, esse arquivamento garante que a Escola se preserve na função para a qual ela vem sendo moldada pela democracia brasileira: sensibilizar eleitores em tempo de eleição.

A foto da postagem foi tirada da Web, por isso não tem o nome do fotógrafo.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Lançamento de ATO PENITENCIAL


Vem chegando o dia...

O Lançamento do ATO PENITENCIAL será no dia 21 de outubro (sexta-feira), às 20:00 hs, nos Estúdios Kaiser - Rua Mariana Junqueira, 33

Agradeço a gentileza dos Estúdios Kaiser, que nos cederá o espaço para o lançamento; ao Lau, da Editora Coruja, pela paciência com minhas mudanças constantes no texto (acho que nem Balzac fazia tanta alteração às vésperas da impressão). Também agradeço aos amigos e familiares que sempre me apoiaram e me acompanharam.
Agradeço muitíssimo desde já àqueles que vão comprar o livrinho e assim me ajudar a recuperar o investimento.

agradeço à vida por ter insistido em colocar a Literatura no meu caminho até eu enxergar que nasci para ela.

(Engraçado, isso parece discurso de primeira publicação e o ATO é a minha terceira... Sem desprezar o "Cárcere Privado" e o "Mundo Suspenso", admito que o "Ato" é a mais audaciosa até agora)

Segue uma sinopse do romance

SINOPSE: Um padre, Fausto, cansado de conduzir sua comunidade e vivendo a dúvida sobre sua vocação, decide relatar sua vida desde uma tragédia na infância até chegar ao sacerdócio. Intercalando com esse relato, Fausto faz reflexões sobre a sociedade atual, os desafios que ele enfrenta como padre e os fragmentos de lembranças do passado. À medida que Fausto se aprofunda nas suas limitações e fraquezas, o demônio Asmodeu se insinua para ele fazendo provocações e promessas de torná-lo um super-homem.

Ah, a respeito dos dados na capa... é para estimular a reflexão sobre o que move nossas escolhas e ações.

domingo, 9 de outubro de 2011

OUTSIDERS - O CONTO

OUTSIDERS


_ Quinta-feira não é dia pra terminar com bebedeira. Amanhã cê levanta com dor de cabeça. E o trabalho?
_ Agora já foi, tá? Já bebi. O negócio agora é dormir. Boa noite, amor.
_ Boa noite... e trata de não deixar isso virar rotina...
_ Isso o quê, mulher?
_ Esse negócio de barzinho na quinta... A gente já sai na sexta, não precisa sair na quinta.
_ Ai, criatura! Hoje eu tava precisando, Lu, eu tava estressado demais, cacete. Foi só hoje.
_ É bom mesmo. – e virando-se para o lado oposto ao marido, resmungou bocejando – Curtir ressaca tem que ser no sábado... dormir até mais tarde... Ressaca no trabalho, não dá certo.
Na madrugada ainda escura Lu foi acordada por um barulho, mas não despertou totalmente. Na certa o gato da vizinhança estava de novo fuçando no seu latão de lixo da área de serviço. Em segundos voltou para os sonhos.
O dia já estava clareando quando Lu acordou com uma cantoria de pássaros diferentes. Parecia que todos os pássaros da fauna tinham resolvido cantar juntos. Ou talvez Lu decidisse naquele dia prestar mais atenção nos pássaros. Ela se levantou; sem tirar a camisola, foi fazer o café. Depois colocou as luvas de borracha amarelas e foi à área de serviço com a intenção de apanhar o lixo e colocá-lo para fora do portão. Era dia do caminhão da coleta passar. Quando Luciana chegou à área de serviço, encarou a luminosidade do céu com indiferença. O pequeno espaço não oferecia muito; nada a esperar, nada mais do que algum balde derrubado pelo gato da vizinhança. Mas ao virar o rosto do armário de baldes para o latão de lixo que ficava no canto mais extremo do quintalzinho... o susto... Na vidraça que ligava a área de serviço a um pequeno escritório havia um homem entalado. Ele tinha a metade do corpo para fora da casa e a outra metade para dentro. Era jovem; isso se podia ver pela bermuda e pelo tênis que usava. E era magro, muito magro; tão magro que esperava caber na passagem da vidraça. Tinha feito um cálculo errado: não cabia totalmente naquela passagem. Por isso estava ali, preso pela barriga, com peito, braços e cabeça para dentro da casa e tendo do lado de fora a cintura, com quadris e pernas. Lu ficou imobilizada por segundos e logo adivinhou o que havia acontecido: o invasor tinha tentado entrar pela vidraça aberta, mas ficara entalado. Agora respirava exausto, como se tivesse passado horas tentando atravessar a outra metade do corpo para dentro da casa, ou então tentado voltar para trás, o que também não conseguiu. As pernas, à vista de Lu, remexiam buscando impulso para levar os quadris à travessia.
“Não era gato nenhum, o barulho na madrugada era ele!”, pensou a mulher. E examinava, assustada e em silêncio, o vão da vidraça, na tentativa de ver se havia chance de sucesso do outro. Não havia. O corpo estava num estado tão lamentável que Lu cogitou correr até o lado de dentro da casa e encarar aquele bandido com raiva, e fazer-lhe ameaça, atazanar sua vida, já que ele nada poderia fazer naquela situação. Quase ao mesmo tempo também refletiu que as mãos do homem, ocultas do lado de dentro, podiam portar uma arma, o que tornaria arriscada a ideia de afrontá-lo, apesar de tudo.
Segura no seu silêncio e oculta ao infeliz, Lu aproximou-se da lata de lixo que estava a uns dois metros do desconhecido entalado. A mulher fez o que tinha que fazer: tirou o saco com lixo de dentro do latão, fez um nó na boca – sempre espiando para o corpo entalado: era preciso se prevenir contra a remota possibilidade de ele se livrar – e depois colocou um novo saco no latão. Carregou o saco de lixo para fora da casa. Para isso teve que dar uma volta pelo corredor que circundava a casa a partir da cozinha, pois a área de serviço não tinha outra saída a não ser a cozinha.
No caminho a mulher ia pensando: “Como ele chegou ali? Pela cozinha não foi. Deve ter sido pelo muro do vizinho. Só pode ter sido por ali, não tem outro jeito”.
Na rua, enquanto erguia o saco de lixo à altura do cestinho de ferro, na calçada, viu quando passou o motoqueiro entregador de jornais. E Lu se lembrou que dali dois dias venceria a data para pagamento da assinatura da sua revista de artesanato. Mas essas movimentações cerebrais ocorreram num piscar de olhos, pois na verdade Lu estava mesmo centrada era no suposto ladrão que tentara invadir sua casa.
“Quando o Armando acordar, ele vai chamar a polícia. Uma viatura vem até aqui. Os caras retiram o infeliz da janela e tudo bem”. – pensou Lu enquanto voltava para os afazeres.
Armando demorou a acordar mais do que o costume. Era o efeito do vinho da noite anterior. Lu foi chamar.
_ Armando, acorda, tá na hora. Vai se atrasar.
Armando levantou-se, foi correndo ao banheiro, com um olho no relógio e o outro na pasta de documentos que ainda precisava organizar para apresentar ao chefe.
Enquanto o marido tomava banho, Lu correu com o café, desviando o olhar da porta de vidro que dava acesso à área de serviço. Agora que o marido estava acordado, precisava esperar que ele percebesse o intruso entalado na vidraça do escritório e tomasse as providências cabíveis. Afinal ele era o homem da casa. Lu entendeu que isso deveria acontecer sem que Armando fosse alertado por ela. O marido deveria descobrir sozinho a presença do criminoso na casa. Nesse caso, Armando certamente ficaria surpreso de ver que a mulher não o percebera, já que ela havia acordado primeiro e estava às voltas com as coisas domésticas há mais tempo que o marido. Diante desse pensamento, Lu agiu rapidamente: voltou ao portão e recuperou o saco de lixo que ainda não tinha sido coletado pelo caminhão da coleta. Correu para a área de serviço, colocou o saco como estava na lata, desfez o nó da boca do saco, abriu as abas como se nunca tivesse mexido ali e deixou a lata no canto como estava antes. Depois correu ao jardim, em busca de um vasinho qualquer para enfeitar a mesa do café da manhã. Escolheu um pequeno kalanchoe amarelo. Depois pensaria porque estava tomando essa atitude inédita. No momento a urgência mandava que se providenciasse algo inédito que fosse percebido pelo marido.
Quando Armando chegou à cozinha encontrou a mesa pronta para o café da manhã, como vinha acontecendo naqueles três meses de vida recém-casada. A surpresa é que Lu acrescentava à mesa um vasinho de kalanchoe amarelo.
_ Café da manhã com flor!
_ É só um agradinho pra você.
_ Que cê quer pedir? Roupa, sapato, batom? Cê sabe que não precisa fazer cerimônia. Fala o que cê quer comprar, Lu. Eu te dou o cartão.
_ Deixa de ser bobo, eu quis fazer o agradinho porque ontem te critiquei por você beber demais.
E ele, servindo-se e ao mesmo tempo olhando com carinho para a mulher:
_ Eu entendi você. Tava preocupada com o dia de hoje. Achou que eu ia perder a hora do trabalho por causa do vinho de ontem. Tava preocupada com a gente, com o meu emprego. Eu entendo. Cê não fez crítica nenhuma, só me alertou. E fez bem em me alertar.
Ela sorriu. Sorriu como se vivesse no mais seguro dos mundos.
Como estava preocupado com a hora, Armando tratou de terminar o café, arrumar a pasta de trabalho e sair, sem se preocupar com qualquer eventualidade que pudesse estar assombrando sua casa. Enquanto Armando tirava o carro da garagem e acenava para a mulher, esta mordia os lábios. O marido tinha saído sem se dar conta do ladrão entalado... Caberia a ela chamar a polícia?
Lu fechou o portão e enquanto se fechava em casa, também se culpava por não ter promovido algum incidente que obrigasse Armando ir até a área de serviço ou ao escritório e flagrar o ladrão mal sucedido. Culpando-se por essa falha a mulher entrou em casa mas não teve coragem de ir à área de serviço... e muito menos ao escritório, onde encontraria a parte superior do corpo invasor e assim veria o rosto do ladrão. Trancou-se no quarto do casal e começou a arrumar a cama. Quando terminava as arrumações, ouviu o caminhão da coleta de lixo passando na rua. “Perfeito”, pensou ela. Os fatos caminhavam no sentido de fazer valer seu álibi. Oficialmente Lu não tinha pisado na área de serviço, não havia recolhido o lixo do latão como era seu hábito duas vezes por semana. Oficialmente, segundo sua versão, ela não recolhera o lixo porque estivera mais preocupada em preparar uma bela mesa de café da manhã para o marido. Estivera mais empenhada em vasculhar o jardim em busca de uma planta para enfeitar a mesa. E agora estava explicado seu gesto de carregar o kalanchoe amarelo para a cozinha. Enfim, caso alguém, num futuro próximo, questionasse o fato dessa dona de casa não perceber a presença de um homem preso numa vidraça da sua casa, Lu saberia responder com convicção: “Naquele dia eu não entrei na área de serviço, onde estava uma parte do homem, e nem no escritório, onde estava a outra parte dele”.
E foi raciocinando sobre essa defesa que Lu pensou no escritório. Por um instante cogitou novamente ir até o escritório e encarar o rosto do ladrão. “Mas e se ele se assustar comigo e conseguir forças para se desentalar?”... Um sentimento de horror invadiu Lu. Teve medo. Esse medo agora era o medo do outro, do estranho que estava sofrendo, preso por uma ação mal calculada. Até pouco antes Lu estivera amedrontada sim... mas tratava-se de um medo de si mesma. Agora estava com medo do ladrão. Decidiu ir ao escritório, não para encarar o inimigo, mas para trancar a porta que ligava o escritório com o resto da casa. Chegou ao corredor e viu que a porta, aliás, estava aberta. Do corredor era possível ver o interior do escritório e notar que o sol da manhã já iluminava o ambiente. A luz do sol invadia o cômodo através da vidraça que tinha na sua abertura um rapaz entalado. Lu teve mais medo ainda. Sentiu as mãos suarem. Aproximou-se devagar da porta. Ouviu uns gemidos: “aaaaiii... aaaahhh.... eeeiii”, um murmúrio quase inaudível: “cacccct” e uma respiração ofegante. Em seguida ouviu um murro leve na parede como se fosse dado por um punho em fúria porém fraco. E um suspiro, um sussurro: “oooh deus, me ajuda!”
Foi o suficiente para Lu se aproximar da porta, estender o braço na direção da maçaneta e fechar a porta com força, embora evitando o barulho. Trancou e saiu pelo caminho de volta. Depois pensou: como explicaria essa porta trancada? O que as autoridades entenderiam sobre essa porta trancada? Na certa compreenderiam que a dona de casa sabia da existência do homem vitimado pela vidraça e quisera se proteger caso ele conseguisse se livrar. Assim trancara a porta que daria a ele a chance de invadir a casa toda. Diante desse raciocínio Lu voltou imediatamente à porta do escritório, destrancou-a, abriu-a como estava antes. E se encostou contra a parede do corredor, como se preparasse para ouvir de novo os sussurros de terror do ladrão entalado. E de fato ouviu um “aaaaai” muito baixinho, com a voz em sopro. Pelo jeito o infeliz continuava tentando se desentalar e já estava muito fraco depois passar a madrugada toda na peleja.
“Se tivesse que sair, já tinha saído”, pensou Lu e decidiu encarar a segunda metade do ladrão, a metade que tinha conseguido entrar na sua casa. Entrou no escritório, olhou para a cena na vidraça. Viu que a cortina de renda estava machada de sangue. O invasor, de tanto se esforçar para atravessar o resto do corpo, havia machucado a barriga na barra de ferro da vidraça e em desespero tinha usado a cortina para limpar o sangue.
O rapaz ao ver que alguém entrava no cômodo, ergueu o pescoço apoiando as mãos na parede:
_ Moça, chama o bombeiro!... Rápido, moça, chama o bombeiro. Eu tô morrendo aqui. Vai, rápido!
Pela visão da situação do outro a partir do novo ângulo, Lu confirmou que não havia a menor chance dele se livrar daquela enrascada sozinho. Com muito esforço, o máximo que conseguiria era voltar para lado de fora. Aliás, a visão do incidente deixava uma dúvida: como aquele homem tinha conseguido passar metade do corpo por espaço tão pequeno?
_ Eu vou chamar a polícia. – ela disse. – E eles resolvem o que fazer.
_ Não, moça, não chama a polícia, Chama o bombeiro.
_ Polícia, bombeiro... É tudo a mesma coisa.
_ Se você chamar a polícia, quando eu sair da cadeia, volto aqui e te mato. Chama o resgate. Chama uma ambulância.
_ De qualquer jeito, - disse ela, gaguejando de medo – qualquer um que eu chame pra tirar você daí... Não importa. De todo jeito vai ter boletim de ocorrência. Você vai preso de qualquer jeito. Nesse caso... se você vai voltar pra me matar... eu não vou chamar ninguém. Tenta sair sozinho.
Lu saiu do escritório com tanta raiva que precisou tomar água com açúcar para voltar ao normal. Mas a sua rotina normal estava difícil de ser retomada. Teve vontade de chorar, teve vontade de ir com uma faca ao escritório e cortar o pescoço do ladrão. Conteve-se, riu dos próprios pensamentos, foi ao banheiro, fez xixi, olhou-se espelho. Disse para si mesma: “Pensa, Lu, pensa, toma uma providência”. O que fazer? Olhos vagando entre a pia do banheiro e o espelho implacável. Os braços rígidos apoiados no gabinete da pia, suportando os ombros indecisos.
A água com açúcar deve ter feito alguma diferença no estado de espírito de Lu porque ela finalmente conseguiu sair da sua imobilidade. Decidiu que passaria boas horas fora de casa. Tinha que ir ao banco. A assinatura da revista de artesanato poderia ser paga na segunda-feira, mas Lu decidiu que pagaria naquele dia. Iria portanto ao banco.
“Que horas são?”, ela se perguntou correndo ao relógio do corredor que levava ao escritório. Quinze para as oito. Faltava muito tempo para o banco abrir. “O que eu faço?... Calma, tá tudo bem... é só pensar numa coisa que me faça ficar fora de casa... Caminhada? Nunca fiz caminhada na vida, por que começaria logo hoje?... Bom, hoje é sexta-feira, é dia de feira aqui perto de casa. Só fui naquela feira duas vezes em três meses de casada. Mas e daí? Sou dona de casa e toda dona de casa tem o direito de ir à feira. Hoje eu vou”.
Lu trocou a camisola por uma calça jeans e uma camisa com pequenas estampas em xadrez azul claro, depois se penteou devagar, pegou a sacola ecológica, pegou a carteira. Antes de sair foi de novo ao escritório.
_ Moça, socorro, chama alguém pra me tirar daqui, por tudo que é sagrado.
_ Por tudo que é sagrado?... Mas se você for preso... quando sair da cadeia...
_ Não, moça, eu tava brincando. Não vou fazer nada com a senhora não. Pelo amor de Deus, socorro!
_ Tenta sair sozinho. Eu não tenho nada a ver com as suas coisas. Eu nem te conheço...
E o rapaz deixou a cabeça cair num lamento desesperado. Sem erguer a cabeça, e com os braços relaxados, largados em total impotência; a voz sem força sussurrou:
_ Me tira daqui, moça, me tira daqui!
A imagem da entrega daquela cabeça ao próprio peso e ao próprio infortúnio fez Lu repensar sua decisão. Sentiu que o rapaz de fato estava arrependido da tentativa de invasão. Enquanto iniciava uma reflexão sobre salvar ou não o corpo do inimigo, Lu ouviu o telefone tocar:
_ Oi mãe, tudo bem e a senhora? A dor na perna melhorou?... Esse fim de semana?... Não sei, preciso ver com o Armando? Ele anda tão ocupado. Semana passada trouxe trabalho pra casa... É... Mudanças na empresa... Não, não, ele acha até que são mudanças boas pra ele. Ele falou que tem muita gente da diretoria que vai se aposentar este ano... É... Ele tá esperançoso... de repente, quem sabe? Com tanta gente se aposentando, muitos do setor dele vão ser promovidos. O Armando tem esperança de uma promoção... Claro que ele tem chance. Foi pra isso que ele fez MBA... É, ele é muito esforçado... Tá bom, fica assim, eu vou ver com o Armando se ele tem algum programa pro domingo. Se não tiver nada, a gente vai almoçar aí... Tá bom, mãe. Beijo. Depois te ligo.
Lu já estava a cominho da saída da casa com destino à feira, sua primeira ideia para se manter fora de casa, quando teve uma outra ideia. Voltou para dentro. Ligou de volta para a mãe:
_ Manhê, eu tava esquecendo... Tem uma calça do Armando e uma blusa minha que eu queria que a senhora consertasse pra gente. A calça é mais urgente; o Armando usa pra trabalhar. Posso deixar aí com a senhora?... Hoje, pode ser?... Assim se a gente for almoçar aí no domingo e se a senhora já tiver tido tempo de consertar as roupas, eu trago no domingo. Pode ser?... Tem certeza que não vai atrapalhar?... Então tô indo aí. Beijo.
Desligou o telefone e com os punhos fechados comemorou: “Yes!” Enfim havia conseguido mais um motivo para ficar fora de casa.
Arrumou-se, apanhou uma calça de Armando cujo zíper estava com defeito e uma blusa sua que estava com a gola desfiada, colocou tudo numa sacola. Depois pegou a fatura da assinatura da revista de artesanato, conferiu o dinheiro na carteira. Fechou a casa e saiu com seu carro.
O tempo que estaria na casa da mãe e depois no banco, deveria ser suficiente para que o homem preso na vidraça morresse. Assim esperava Lu. Tudo estava portanto calculado: mais tarde, quando a polícia pedisse seu depoimento, ela contaria que naquela sexta-feira acordara cedo, preparara o café para o marido e logo depois dele sair para o trabalho ela também saíra para ir à casa da mãe e ao banco. Só descobrira o cadáver preso na sua janela quando chegara em casa lá pelo início da tarde. Pronto. Álibi perfeito.
A caminho da casa da mãe, enquanto dirigia pelo centro da cidade, Luciana irritou muitos motoristas apressados. Dirigia com tanta lentidão que chegou mesmo a receber um xingamento. Não se abalou com isso. Seu empenho estava voltado para coisas que exigem tempo. Precisava de tempo para pensar. Dirigia devagar porque sua mente queria tempo para processar a realidade.
Diante da casa da mãe, Lu estacionou mas hesitou em entrar. Já adivinhava o que escutaria e não estava, nesse dia, com estrutura emocional para lidar com as questões que ocupavam Georgina, a mãe. Luciana olhou no relógio... 8:55 . Até chegar a hora do banco abrir, terá um bom período. Então o jeito é tratar com a mãe o básico da visita e sair, inventar outro compromisso e sair. O que interessa é manter-se longe de casa.
Georgina recebeu a filha com o abraço frouxo de sempre, como se a filha fosse de vidro.
_ Que tem que ser feito nas roupas?
Luciana tirou a calça e a blusa da sacola, mostrou os problemas das roupas e novamente pediu que a mãe só as arrumasse quando de fato tivesse tempo livre.
_ Não quero atrapalhar a senhora.
_ Você fala como se eu fosse uma costureira qualquer. Eu sou sua mãe.
A filha sorriu, adivinhando o que viria a seguir.
Georgina aproveitou o sorriso da filha para anunciar:
_ Seus irmãos estão sempre indo ao hospital visitar seu pai. Você não foi nenhuma vez.
_ Eu já falei que não suporto hospital, mãe. Não insiste.
_ Nem pelo seu pai você enfrenta essa fobia de hospital...
_ Mãe, eu já sofri demais por não ter o papai no meu casamento. Não vou aguentar ver ele numa cama, todo entubado, sem consciência de nada... não aguento isso...
_ Ele também tava contando os dias pra te levar ao altar. – revelou a mãe tentando conter a emoção. – Era a primeira filha que ele levaria ao altar. As suas duas irmãs se casaram só no civil... Seu pai tava tão feliz com você, Luciana! Era tudo que ele queria: ver todos os filhos casados com a benção da Igreja...
Luciana teve que relembrar o universo todo que cobria seu recente passado: o casamento com Armando, três meses antes, tinha acontecido não só perante um juiz, como fora com suas irmãs, mas também na igreja católica, por recomendação de Armando: “Lá na empresa, todo mundo sabe que os donos são super católicos; então mesmo quem não é católico, se quiser crescer dentro da empresa, acaba se convertendo. Nosso casamento vai ser diante do padre”, decretara Armando, o que para Lu não representava nenhum sacrifico pois, como não seguia religião nenhuma, apesar das insistências do pai católico conservador, estava mais preocupada com as coordenadas do noivo a respeito do perfil ideal para executivos bem sucedidos.
Tudo agendado, todos estavam felizes com a decisão do casamento: os noivos, os pais dos noivos, o patrão do noivo. Então houve um acidente: o pai de Luciana sofreu um grave acidente de carro duas semanas antes do dia de levar a filha ao altar. O casamento não podia ser adiado. Armando já tinha pago tudo. O casamento aconteceu mesmo estando o pai da noiva em estado de coma. Georgina compreendeu a decisão de se manter a data do casamento, mas sofreu má digestão. Por conta disso, não se cansa de exigir que Luciana visite o pai em coma.
_ Seu pai queria tanto te levar ao altar, Luciana!... Visita ele, pelo amor de Deus! Conversa com ele, filha!
_ Ele tá em coma...
_ Ele vai sentir sua presença...
_ Que médico meteu isso na sua cabeça?
_ Médico nenhum. Eu sei muito bem o que é estar em estado de coma. Não zombe da sua mãe!
_ Me desculpa, eu não quis zombar da senhora.
_ Então para de me tratar como uma idiota. Seu pai está inconsciente, mas eu tenho certeza que ele vai sentir sua presença....
_ A senhora sempre foi tão racional, mãe. – desabafou Luciana, incomodada com o comportamento que a mãe assumira nos últimos meses desde a tragédia com o marido.
Georgina, dura como ferro, vinha revelando uma mudança: andava muito voltada para as coisas da morte.
_ Tá bom, dona Georgina, eu vou visitar o papai hoje. – disse Lu aliviada por ter conseguido mais um compromisso que a mantivesse fora de casa.
Na fila do banco Luciana contava os minutos. O relógio de pulso, com os ponteiros dourados, marcava o tempo de tortura fatal do desconhecido acidentado em sua casa. A mulher só esperava que, depois da breve peregrinação fora de casa, ao voltar, o homem fosse encontrado já sem vida.
Foram pelo menos dez minutos na fila. Quando chegou a vez de Lu, ela cedeu seu lugar a um contínuo que estava às suas costas. O rapaz agradeceu sem entender a gentileza e seguiu. Lu torceu para o próximo caixa a se desocupar levasse um bom tempo para chamar-lhe.
Feito o pagamento da fatura, Luciana saiu do banco como se fosse eterna. Caminhou devagar olhando para cada detalhe da agência como se de repente isso lhe interessasse por algum motivo. No trânsito, nova lentidão na condução do carro. Mais irritação dos outros motoristas. Decidiu que antes de entrar em casa e verificar a situação do ladrão, iria à feira. E então, por um instante lhe veio uma lembrança incômoda: pelos seus hábitos de dona de casa, sexta-feira normalmente era dia colocar na máquina de lavar os lençóis e toda roupa de cama. Por essa ordem, portanto, se não fugisse da rotina, teria que visitar a área de serviço. Nesse dia porém a rotina tinha que ser alterada para que não houvesse desconfiança. A lembrança incômoda dizia respeito à atenção de Armando: o marido era perspicaz; qualquer pequena mudança na rotina da mulher era notada por ele, como querendo expressar que reconhecia a dedicação dela às coisas da casa. Notaria ele que justo nesse dia, em que uma simples passagem pela área de serviço ou pelo escritório era suficiente para detectar a presença do invasor infeliz, preso pela barriga no vão da vidraça... justo nesse dia a esposa fizera várias alterações na rotina diária: não recolhera o lixo de manhã, não colocara as roupas de cama para lavar... E o que dizer do escritório? Era lá que estava o computador por onde Luciana logo de manhã verificava os e-mails e enviava recadinhos carinhosos ao marido durante o dia.
Essa preocupação acompanhou a dona de casa durante todo o tempo em que percorreu a feira, sem conseguir comprar nada. Achou necessário ligar para o celular do marido, coisa que normalmente evitava fazer para não correr o risco de atrapalhá-lo no trabalho, e contar as decisões que havia tomado. Mesmo que Armando, mais tarde, percebesse a grande coincidência de a mulher alterar a rotina justo no dia em que a casa recebia a visita de um bandido, Luciana tinha que apostar na sorte e fazer tudo parecer realmente uma grande coincidência.
_ Alô, amor... Eu tô atrapalhando? Você tá podendo falar, Armando?... Tá bom, é rapidinho. Eu tô ligando pra contar que fui agora cedo na casa da minha mãe... Ela insiste que eu tenho que visitar meu pai... Daqui a pouco vou ao hospital. Agora eu tô na feira. Daqui vou passar em casa rapidinho, tomar um banho e vou ao hospital... Se tá tudo bem? Tá... tá tudo bem, eu só tô um pouco nervosa; cê sabe que eu detesto hospital... Almoçar?... Ah, como qualquer coisa na rua... Talvez eu almoce no hospital... Eu pareço apressada? É... é pressa sim; eu tô... eu tô com pressa de resolver isso logo... Assim minha mãe fica em paz...Tá bom, ligo sim... beijo.
Mal desligou o celular, Luciana fechou os olhos e quis desaparecer. Como não pensou nisso? É claro que a principal alteração de rotina a ser percebida por Armando diria respeito ao almoço. Ele que almoçava todo dia no refeitório da empresa, sabia que a esposa almoçava todo dia sozinha em casa. Quando ela anunciou-lhe que estava às voltas com os assuntos de família, logo ocorreu a ele que ela poderia ficar sem comer por conta dessas ocupações. Preocupado o atencioso marido quis saber como ficaria seu almoço. A saída encontrada por Lu parecia agora ser a única possível. Que outra resposta daria? Não poderia dizer que faria a visita ao pai hospitalizado depois do almoço, porque isso representaria uma chance de permanecer mais tempo em casa.
Certa de que estava fazendo o necessário para justificar sua ausência na casa por maior tempo possível, Luciana chegou em casa sem nem mesmo guardar o carro na garagem. Cada passo estava determinado: examinaria o intruso e, independentemente do resultado, tomaria um banho rápido e sairia em seguida.
Quando, na varanda, aproximou-se da porta da entrada, antes de tocar a maçaneta, ouviu um som de janela deslizando por um rolamento. O som vinha do sobrado vizinho onde morava um casal de aposentados que nunca colocava os rostos para fora. Um amargo pressentimento veio à garganta de Lu e um sentimento de instabilidade percorreu-lhe corpo. Dali mesmo caminhou devagar para o jardim, ponto do qual tinha a visão da lateral do sobrado. A janela que deslizara tinha sido aberta por alguém. Do ângulo de Lu era possível ver uma parte do interior da casa. Era a cozinha. O casal de velhos nunca abria nenhuma janela da casa; apenas a diarista, que os visitava nas quartas-feiras, tinha o hábito de abrir todas as janelas durante a faxina. Luciana tremeu só de pensar que um dos velhos percebera algo estranho e decidira abrir a janela. Que outra explicação haveria? E mais uma vez Luciana se detestou por não presumir algo tão óbvio: daquele segundo andar do sobrado, da janela da cozinha, era possível uma visão perfeita da sua área de serviço. Bastava colocar o rosto na janela e o pequeno quintal que acompanhava a área de serviço estaria à vista dos vizinhos. Bastava aparecer na janela para ver toda a vidraça de Lu, que desde aquela madrugada vinha servindo de armadilha para o ladrão desastrado.
Luciana sentiu o suor correr por dentro da camisa de xadrez azul claro. Os olhos não piscavam. Queria ver o que estaria por trás daquela janela aberta, quem estaria na cozinha. Seria a velhinha? Ela usa óculos fundo-de-garrafa, deve ter visão ruim. O velhinho é distraído como ele só. Talvez tenha problemas de memória... Escondida atrás de uma pilastra que decorava a área do jardim, Lu sente o suor na testa debaixo da franja e na nuca, debaixo do cabelo curto. Quem quer que tenha mexido na janela custa a aparecer. E quando aparecer... poderá ver claramente um corpo pela metade, socado numa vidraça da casa vizinha. Verá os quadris e as pernas do infeliz e levará um susto. A ansiedade faz Lu se apoiar na pilastra. Os segundos são eternos! E então, outro pensamento: talvez já tenham visto o corpo... devem estar tomando as providências. Ligarão para a polícia? Estão fazendo telefonemas? Estão tomando as providências? Se assim for, a polícia chegará logo. É preciso então sair logo de casa e manter o jogo como programado.
Mas... e se o homem ainda estiver vivo?... E se for resgatado vivo? Um dia voltará para se vingar!... Luciana se apavora. No sobrado vizinho ninguém surge; nenhum sinal, ninguém dá sinal de coisa alguma. Os olhos presos na altura da janela... Luciana já não suporta tanta ansiedade, quando de repente... um vulto. Uma pessoa passa pela janela. Mas é ágil demais para ser um dos velhos. Luciana prende a respiração. Depois acelera a respiração. O vulto passa novamente na direção contrária à anterior. Definitivamente não é o velhinho e nem a velhinha. Também não pode ser nenhum parente; parentes deles nunca aparecem. E quando a ansiedade levava Luciana a partir para mordidas nos dedos, eis que surge a pessoa que pode pôr fim no tormento. É a diarista. Janaína, a moça que faz faxina no sobrado toda quarta-feira... E Luciana se espanta com a surpresa. Desde que se casou e se mudou para a casa, e portanto desde que passou a conviver com a vizinhança, Lu sempre soube que o costume da diarista dos velhos aposentados era fazer a faxina deles nas quartas-feiras. O que estaria fazendo lá em cima na sexta-feira?... Como um relâmpago vem a resposta: Lu se lembra de que no início da semana, quando saiu para ir à padaria, encontrou a velha que vinha entrando e num dedinho de prosa descobriu que Janaína trocaria o dia da faxina naquela semana, por motivos que Lu já nem se lembrava mais. Então era isso. A quarta foi trocada pela sexta-feira. E justo nesse dia a moça corre o risco de levar um susto quando olhar pela janela e baixar os olhos para o quintal vizinho.
Do ponto onde está Lu vê a moça passar outras vezes pela janela, mas ela sequer olha para o lado exterior. Parece apressada. Certamente deve ter chegado logo pela manhã e cuidado da faxina dos quartos e salas. Agora que se aproxima a hora do almoço, deve estar ocupada com a preparação dos pratos e talheres para quando as marmitas chegarem.
Luciana já se sentia parte da pilastra, de tanto se grudar a ela, quando escutou um barulho de moto. No susto, pulou e olhou rápido para trás. O que viu através dos vãos do portão da garagem foi uma rua deserta como sempre. Não resistiu e saiu até a rua. O motoqueiro vinha trazer as marmitas dos velhos e da faxineira. Escondida Lu prestou atenção no contato entre o entregador e os da casa. Janaina foi receber as marmitas. Estava como sempre estivera, risonha, simpática. De modo algum poderia ter visto algo assustador como um corpo entalado numa vidraça. “Não, ela não viu nada por enquanto”, pensou Lu. Mas a janela continuava aberta. Ainda havia o risco de alguém do sobrado ver o corpo.
Era preciso portanto sair logo de casa. Já que agora havia o risco do corpo estranho ser denunciado, fazia-se urgente estar ausente.
Luciana entrou depressa em casa. Percorreu o longo corredor ao fim do qual havia o escritório. Estava esperançosa de ver um corpo entregue à morte, encontrou o ladrão gemendo ainda. Mordeu os lábios, deu uma batidinha leve do pé direto no chão e voltou para o corredor. Desiludida andou de um lado para outro, pedindo a si mesma “pensa, Lu, pensa”. O que fazer?... Voltou ao escritório. Só nessa segunda chegada o moribundo percebe a presença de alguém no cômodo. Busca forças. Ergue devagar a cabeça. Vê a mesma mulher, com cerca de trinta anos, bonita, branca como um defunto e de cabelos escuros, lisos e curtos. Os olhos castanhos dela não parecem nem um pouco piedosos. Ao contrário, são olhos de decepção.
_ Falta muito pra você morrer? – ela diz, com a voz embargada.
E ele:
_ Me tira daqui, moça, não quero morrer assim.
_ Quem mandou se meter nesse buraco. – ela dá dois passos para dentro do escritório, sem se aproximar da vidraça. Olha atenta para a cena. E mais uma vez se impressiona com a capacidade de um adulto passar por uma abertura tão pequena.
_ Eu não sei como você conseguiu entrar por aí... a cabeça, o tórax, como? Nem uma criança passa por aí...
_ Me ajuda, moça, me tira daqui. Não tenho força. Não consigo sozinho.
_ Eu preciso sair. Preciso ver meu pai que também tá entalado.
No corredor Luciana pisou com peso e com raiva da situação toda. Afinal o tempo passava e o rapaz parecia resistente. Mantinha a consciência. Estava sofrendo, o que era pior.
Enquanto tomava banho Lu se via inconformada com o inusitado. Ainda na feira, estivera esperançosa de que quando chegasse em casa encontraria o rapaz sem vida. Mas contrariando sua expectativa, ele estava vivo e consciente. Quanto tempo mais duraria? Quanto tempo ainda sofreria? A mulher teve vontade de xingar.
Terminou o banho, foi para o quarto, vestiu uma calça preta e uma blusa com florinhas. Talvez estivesse sob efeito de alguma lembrança obscura da infância, quando sempre usava vestidos floridos. Talvez estivesse sob efeito da lembrança infantil quando o pai era seu herói, seu melhor amigo, seu protetor.
Tinha urgência de deixar a casa. Foi se penteando enquanto descia a escada do quarto para a saída da casa. Perto do corredor que dava acesso ao escritório, a surpresa: numa sala ali perto o telefone toca. Luciana para e decide que não pode atender. De maneira alguma deve atender um telefonema a essa altura. Olha no relógio do pulso: meio dia e vinte e cinco. O invasor ainda está vivo. Ele geme, faz barulho que pode ser ouvido em vários cômodos da casa. É preciso que pensem que não há ninguém na casa. Pois se há alguém, esse alguém pode ouvir os gemidos. O telefone continua tocando. Lu está imóvel. De repente lhe ocorre: Janaina pode ter visto corpo do lado de fora da vidraça e está ligando para saber se os moradores estão em casa. Talvez a moça queira alertar os moradores sobre o perigo da invasão. O telefone continua tocando. Talvez não seja ninguém do sobrado, talvez seja só um vendedor de cartão de crédito. O telefone para de tocar. Luciana continua à espera. Essa espera parece ser para sempre. De fato ele não tocará.
Um susto maior: o celular na bolsa de Lu toca. Ela pula de susto e se põe a vascular a bolsa em busca do celular. Agora terá que responder. Talvez a pessoa que tentou falar pelo telefone fixo, sem conseguir sucesso, esteja tentando no celular.
_ Alô.
_ Lu?... Onde você tá?
_ Armando!... eu tô a caminho do hospital. Tô quase chegando no hospital. – e por pouco não pergunta se era ele quem estava ligando no telefone fixo.
_ Luciana, estaciona aí que eu quero te falar uma coisa.
Cheia de constrangimento, ela se imaginou no trânsito, tentando estacionar. Fez o que podia para imaginar a cena e, abalada pela culpa de mentir ao marido, disse:
_ Pronto, pode falar.
_ Lu, eu pesquisei na internet e descobri que existe uma entidade que faz um trabalho muito legal com pessoas que têm parentes como seu pai, em estado de coma ou coisa parecida. Tem como você anotar o endereço?
_ Tem. Espera um pouquinho. – ela diz apanhando papel e caneta.
O marido informa o endereço e as orientações para participar de uma reunião.
_ Hoje tem reunião às quatorze horas. É só você chegar nesse endereço e dizer que foi participar da reunião de apresentação sobre terapia de companheiros.
_ Terapia de companheiros...
_ É. Eles vão te dar um formulário pra preencher. Aí você explica o seu caso, que seu pai está em coma há três meses. E por aí vai. Me pareceu um trabalho muito legal. Acho que vai ajudar muito você, seus irmãos e principalmente sua mãe... Lu... Cê tá ouvindo?
_ Eu tô ouvindo sim. Tô anotando tudo. Vou avisar minha mãe. Bom, a reunião de hoje é daqui a pouco, não é?... Nesse caso, depois que eu sair do hospital, vou direto pra lá. Vou participar dessa reunião. Conforme for, na próxima levo minha mãe.
_ Isso, meu amor, beleza. Resolve aí direitinho, suas coisas, tá bom? Não quero te ver com aquela voz de novo. Aquela que você tava quando me ligou mais cedo. Cê me pareceu preocupada demais, Lu. Não quero você assim. Assiste aí essa reunião; vai te fazer bem, amor. Não gosto de te ver pra baixo.
_ Tá bom, amor, eu vou resolver essas coisas sim.
_ Então tá. Me liga quando sair da reunião. Beijo.
A mulher não consegue conter o choro. Não sabe ao certo o motivo. Talvez seja por ter mentido ao marido, dizendo que estava dirigindo; talvez seja por se sentir uma cruz no ombro do marido, que deveria ter tranquilidade para buscar sua promoção na empresa ao invés de procurar solução para os problemas da família da esposa.
O choro dura só alguns segundos, mas é suficiente para inchar os olhos de Lu. Pelo menos ela tem um compromisso a mais para justificar sua ausência de casa. Mete os olhos escuros no rosto. Sai, fecha a casa e entra no carro.
O carro. Luciana sente mais um mal estar e uma raiva de si própria por outro descuido: afinal, ao chegar da feira ela deixara o carro na rua ao invés de guardá-lo ou escondê-lo na garagem. Quando Janaina saíra para apanhar as marmitas com o entregador, o carro estava ali, estacionado na rua, prova de que a moradora Lu estava em casa. Ela lamenta e percebe que não é nada fácil manter o controle de uma situação quando ela surge tão inusitadamente. “Pensa, Lu, pensa!”, diz para si mesma. Os olhos se voltam para o sobrado vizinho. Talvez Janaína e o entregador de marmitas tenham prestado atenção no carro estacionado. Talvez não. Talvez estivessem muito distraídos para perceber uma coisa tão sem importância. Como saber da realidade? Como entrar na mente dos outros e descobrir o que eles percebem. “Será que essa gente percebeu que eu estive lá dentro da casa até agora?”, se questiona.
E quanto à janela aberta? A terrível janela que oferece uma visão perfeita do ponto onde está preso o invasor da casa vizinha... Quantas vezes a empregada e os velhos do sobrado vão passar por aquela janela sem notar a estranheza lá embaixo? Não há como descobrir. O jeito é prosseguir. Mesmo impotente diante de tantos descuidos e imprevistos, Lu segue para o hospital.
O verão da cidade é rigoroso. Mesmo na sombra o calor é insuportável. Apesar disso, quando Lu saíra do banho, um surpreendente frio a tinha feito se arrepiar, por isso havia apanhado uma blusinha de malha fina com mangas compridas. Agora ao entrar no hospital, vê necessidade de vestir a blusinha. E ainda assim, sente frio. Passa pela recepção. Vai ao quarto onde está o pai. O pai está em estado de coma. Lu se aproxima do leito e sente vontade de se anunciar. Talvez ele ouça. Não, ele não ouvirá. Está isolado desse mundo por questões de corpo; o cérebro foi duramente afetado por ocasião do acidente de carro. Três meses já se passaram e o velho não acorda. Desde pequena Luciana sempre se sentiu fascinada com o cérebro humano. Certa vez pensara em estudar medicina só para entender o cérebro, mas nunca levara esse projeto adiante.
A contemplação da imagem do pai naquele sono todo assistido, todo equipado pelo sistema hospitalar, e ao mesmo todo isolado, tão alheio a tudo e a todos... a contemplação desse quadro emocionou a filha. Qual teria sido a última coisa pensada por ele antes de abandonar o mundo dos sentidos? Teria pensado na filha caçula? Teria lembrado que ela se casaria por aqueles dias? Teria lamentado acidentar-se logo às vésperas de levar a filha ao altar? O que teria passado pela mente do pai nos seus últimos segundos de consciência? Luciana quer respostas. Respostas que não serão dadas.
_ O que eu faço, pai? – ela sussurra como se o pai a ouvisse e como se ele soubesse do seu drama?
Ela sente necessidade de rir de si mesma por ser tão incapaz. Recorrer ao seu herói agora só fará aumentar seu sentimento de desamparo já que ele não pode auxiliá-la. De qualquer forma, fazer a pergunta “O que eu faço?” parece amaciar o coração; então ela ensaia repetir a pergunta, mas não chega a dizer nada: os olhos, sem querer, detectam uma câmara de segurança instalada no quarto. A cena dela sentada, tocando a mão do pai deitado e inconsciente, está sendo filmada e obviamente observada por alguém. Lu sente-se um pouco indignada. Não seria ilegal? Não seria abusivo uma câmera dentro do quarto? Não deveria haver, bem exposto, um cartaz avisando que há uma câmera do recinto? Lu já não consegue ficar à vontade com seu pai, sabendo que está sendo observada. Despede-se do pai, como se ele, em sonhos, lesse seu sentimento, e sai.
Na recepção comunica que viu a câmera e achou estranho:
_ O hospital tem permissão de instalar câmeras de segurança nos quartos dos pacientes?
E a atendente:
_ A diretoria adotou uma política de segurança que instalou essas câmeras em alguns quartos, mas para isso um parente precisa dar autorização.
_ Quem autorizou a câmera do quarto do meu pai?
A atendente acessou os dados no computador depois de perguntar o nome do paciente:
_ Quem assinou a autorização foi Georgina do Vale.
_ É minha mãe. – declarou Lu à atendente, como se esta se interessasse.
Um calafrio fez Lu se arrepiar inteira. A visão ficou embaçada. Repentinamente sentiu um mal-estar. E pediu ajuda, pois tinha medo de desmaiar. Uma enfermeira a encaminhou para um ambulatório. Enquanto caminhava Luciana lembrou-se que não tinha comido nada desde que acordara. E embora não sentisse fome acreditou que a sensação ruim fosse só uma fraqueza. Mas após um breve exame, a enfermeira avisou-lhe que sua febre era preocupante.
_ Febre? Eu... com febre?
_ Uma febre preocupante. – repetiu a enfermeira. – A senhora pode ter uma convulsão. Quer que eu chame um médico?
_ Não, obrigada. – disse e se levantou praticamente fugindo da enfermeira e do sistema hospitalar que ameaçava rendê-la.
Enquanto saía do ambulatório às pressas e sem dar explicações à enfermeira, Lu só pensava que não conseguiria lidar com mais imprevistos nesse dia. Era melhor sair logo e tentar recuperar o controle, o pouco controle que vinha administrando até ali.
Já na última porta do hospital, a dois passos da saída, viu cruzar consigo uma maca carregada por paramédicos e acompanhada por policiais. O corpo sob a maca era de um jovem, de pele escura, magro, muito magro, trajava bermuda e estava sem camisa. Luciana paralisou. “Parece ele... Não, a bermuda do outro é vermelha, esse usa bermuda cinza”. De qualquer maneira Lu seguiu o grupo que corria para o interior do hospital na direção de um dos corredores. Quando finalmente conseguiu ver o rosto do paciente, descobriu que não se tratava do invasor. Mesmo assim decidiu perguntar a um dos policiais o que tinha acontecido. O policial, surpreso com o interesse da mulher que seguia o grupo, respondeu: “Tiro”. E só então Lu percebeu que havia sangue na altura do pescoço do rapaz.
Como já estava certa de não ser seu invasor, Lu saiu logo dali. Quando chegou à rua o sol parecia ideal para exterminar, com seu calor, toda a humanidade. Mas a febre identificada pela enfermeira ainda estava ali. Lu percebia seu corpo totalmente confuso com as temperaturas interna e externa. Mas isso não podia interferir no dia. Havia uma estratégia de defesa a ser cumprida.
Lu entrou no carro, olhou para o relógio: treze e trinta. Tinha pela frente meia hora até a reunião indicada pelo marido. Seguiu para o endereço mesmo assim. Foi uma das primeiras a chegar. Tratava-se de uma casa com arquitetura antiga. Sem dúvida necessitava de uma boa restauração. Lu apresentou-se na recepção.
_ É aqui que acontece um trabalho de assistência com parentes de pessoas em coma?
_ Não só com pessoas em coma. – respondeu um recepcionista. – É aqui sim. A senhora segue por esse corredor, entra na segunda sala à esquerda. Fala com a Rebeca.
Rebeca, uma estagiária sorridente, com aparelhos nos dentes, entregou a Lu um formulário para preencher. Enquanto preenchia o formulário e sentia, de vez em quando, uns tremores de febre, Luciana viu chegar um por um vários participantes que recebiam a mesma orientação da estagiária. Quando o relógio marcava quatorze e quinze, Rebeca pediu que todos a acompanhassem. O grupo seguiu para uma nova sala, com cadeiras colocadas em forma circular. Cada um tomou um posto. Lu sentou-se perto de uma senhora de uns setenta anos. Quando todos estavam instalados, Rebeca saiu da sala.
_ É sua primeira vez? – perguntou a senhora de setenta anos.
E Lu:
_ Eu sim. E a senhora?
_ É a segunda vez. Esse grupo é novo. Parece que somos o primeiro grupo do Dr Roberto Vasconcelos.
_ Quem é Dr Roberto?
_ O médico que diz ser o dono da ideia.
_ Que ideia?
_ A ideia de obrigar os hospitais a darem assistência para os parentes que acompanham pacientes em estado crítico, que precisam permanecer internados por muito tempo. Claro que o Dr Roberto não é o primeiro que tenta fazer esse trabalho. Mas ele diz que é o primeiro. E todo mundo acredita. Tenho médicos na família. Sei que tem muita gente lutando por essas coisas. O Dr Roberto não é pioneiro coisa nenhuma, é só mais um.
_ Eu confesso – disse Lu – que nunca tinha ouvido falar nesse trabalho.
_ O que te trouxe para essa reunião?
_ Meu pai está em estado de coma há mais de três meses.
_ Antes disso você já tinha vivido alguma coisa semelhante?
_ Nunca.
_ Então é por isso que você nunca ouviu falar nessa bandeira.
_ Bandeira! – sussurrou Lu.
_ Moça, eu que pertenço a uma família de médicos e tenho um filho internado... num hospital psiquiátrico... Sei de tudo que passa em hospitais.
Lu já tinha pronta na boca a pergunta sobre o problema do filho da mulher, quando viu entrar na sala um homem que só podia ser o tal Dr Roberto.
O homem saudou a todos.
_ Estou vendo que temos novos participantes no grupo. Para vocês não me conhecem, sou o Dr Roberto Vasconcelos.
Fez uma breve apresentação do seu currículo e explicou:
_ Pois bem. Nosso grupo tem como meta buscar a humanização da atividade nos hospitais. Todos vocês aqui estão diante de uma situação dramática que é a necessidade de visitar hospitais com certa frequência por causa de algum ente querido que teve que ficar internado ou que precisa visitar hospitais regulamente. Muito bem. Nós sabemos que o ambiente hospitalar é quase sempre repulsivo; é um lugar onde a gente vê muita coisa desagradável. É um ambiente ruim de se frequentar. Não é mesmo?
A velha virou-se para Luciana e tocou seu braço como que pedindo sua atenção. Lu inclinou para dar ouvidos à mulher. Esta sussurrou em seu ouvido:
_ Ele falou tudo isso na semana passada, na primeira reunião.
E Lu sentiu necessidade de justificar:
_ Ele tá repetindo porque percebeu que tem muita gente nova no grupo. Eu mesma sou nova.
A velha calou-se.
Roberto fez uma explanação sobre a visão que se tem normalmente dos hospitais, depois prosseguiu:
_ O que fazer para conseguirmos um ambiente de tratamento mais humanizado, mais agradável, menos doloroso?...
A mulher de setenta anos ao lado de Lu ergueu a mão, embora soubesse que o médico não estava fazendo uma pergunta ao grupo mas apenas levantando uma questão para ser refletida ao longo da sua palestra:
_ Eu quero dar uma sugestão, Dr Roberto.
Constrangido com a interferência, o médico cedeu espaço à mulher:
_ Pois não. Qual é a sua sugestão?
_ Eu acho que a humanização no serviço de saúde depende da religião. Nós precisamos de mais religiosidade nos médicos, nos enfermeiros. Na minha opinião todo hospital deveria ter pelo menos uma capelinha, por menor que fosse, para que os parentes pudessem se recolher em oração. Ou, se não tiver uma capela, que haja um crucifixo na sala de recepção, ou num cantinho qualquer...
Antes que Roberto recuperasse a palavra, outro participante do grupo interferiu:
_ Minha senhora, nem todo acompanhante é cristão... Por que gastar dinheiro com capela nos hospitais? Por que espalhar crucifixos pelo hospital? Isso faria do hospital um ambiente estritamente cristão. Mas, e se eu sou budista ou seguidor de outra crença não-cristã? Será que toda vez que visitar meu parente internado, serei obrigado a ver sinais de cristãos? Eu pessoalmente não tenho nada contra cristãos. Mas se o hospital deve ser mais humanizado religiosamente, então que essa religiosidade se estenda a todos, não só aos cristãos.
O palestrante, com ar exausto, pediu a palavra:
_ Vamos esclarecer uma coisa aqui... Quem foi que disse que humanizar o ambiente hospitalar significa levar religião lá pra dentro?
Um silêncio se instalou na sala. Luciana que estava agitada com a discussão que assistia, nesse instante de silêncio, perdeu os sentidos. Quando voltou à consciência estava deitada num sofá, tinha a imagem do Dr Roberto sobre si, a medir-lhe a pressão.
_ Ela acordou, Rebeca. Cê achou algum telefone?
Ao ouvir isso, Lu olhou para o lado e viu a estagiária com sua bolsa e agenda nas mãos.
_ Vou ligar pra esse Armando. Deve ser alguém próximo.
_ É meu marido. – disse Luciana lutando contra a falta de forças. – Não. Não quero que você ligue pro meu marido. Ele tá muito ocupado. Eu estou ótima. Preciso ir embora.
_ Calma aí. – disse Roberto segurando Lu pelos ombros. – Fica deitada. Eu quero medir sua febre.
_ Eu não tô com febre? É o calor. Tá muito quente.
_ A senhora tá com uma baita febre. – disse o médico. – Faça o favor de relaxar. – e se dirigindo a Rebeca – Liga pro marido dela e me passa o telefone.
Luciana levantou-se com agilidade. Livrou-se da tentativa de Roberto a segurar. Foi até a estagiária, que tinha a cara mais assustada do mundo, e recuperou sua bolsa e sua agenda. Depois saiu da casa correndo, apesar de se sentir meio tonta. Passou pelo recepcionista que também tinha uma cara assustada. Desorientada mas consciente das loucuras que estava fazendo Luciana entrou no carro e olhou no relógio. Quinze e quarenta e cinco. “Mas não é possível... Não é possível que passei tanto tempo desmaiada!”
Acelerou o carro. Seguiu para casa. No caminho buscava sobriedade. Respirava profundamente como orientam os médicos em caso de caos. Agora era o trânsito que conspirava contra si. Os carros não se moviam. A pressa em chegar em casa crescia a cada esquina. E quanto àqueles que ficaram para trás? O médico, a estagiária, a mulher que queria capelas nos hospitais e todas as pessoas daquele grupo... O que todas aquelas pessoas estariam pensando? O que estariam comentando entre si a respeito da moça que desmaiara de febre em plena reunião de pessoas que acompanham pacientes internos? O que estariam pensando sobre a cena da moça desmoronando durante uma discussão tão importante sobre os critérios de humanização dos hospitais?
Luciana tinha urgência em chegar em casa, por isso precisava deixar todas essas questões para trás. Não era fácil. Teria que arcar com as consequências da sua atitude. De alguma maneira alguém procuraria por ela ou pelo seu marido para receber notícias. Afinal seu formulário continha todos os telefones de contato do casal. E pensando assim Lu se apavorava enquanto dirigia: “Se ligarem pro Armando e contarem o que aconteceu naquela reunião, o que ele vai pensar?”
Mais tarde pensaria num jeito de consertar esses atropelos. Agora tinha que se concentrar no encontraria em casa. Duas quadras antes de chegar, viu um helicóptero sobrevoar seu céu. Seria um helicóptero da polícia?... Estariam procurando um criminoso pelas redondezas?... Haveria no bairro algum boato sobre um bandido mal sucedido durante uma tentativa de invasão?... Ou o helicóptero nada tinha a ver com a polícia?
Luciana chegou. Guardou o carro na garagem. Entrou em casa, largando a bolsa sobre uma poltrona. Correu para o escritório. O invasor continuava lá preso, só que agora parecia inconsciente. Aliás logo abaixo da cabeça pendente a três palmos do chão, no carpete cinza claro, havia uma enorme mancha escura. Sangue. Os braços caídos ladeavam a grande mancha avermelhada absorvida pelo carpete. Lu aproximou-se devagar do corpo preso. Uma brisa entrava pela vidraça e agitava levemente a cortina de renda branca. Então Lu notou que as pontas da cortina também estavam manchadas de sangue. Na tentativa de se livrar do engasgo o homem havia se apoiado em tudo que tinha à mão, inclusive a cortina da vidraça.
Luciana tinha a impressão de que a qualquer momento alguém chamaria na sua porta ou o marido telefonaria para saber notícias suas. Não poderia ficar naquele escritório presenciando aquele corpo preso pela cintura numa vidraça. Tinha que fazer parecer que havia chegado em casa e se colocado a fazer qualquer coisa, menos estar ali diante daquela imagem. Correu para a cozinha. Decidiu mexer no armário da dispensa. Arrumaria o armário, que na realidade já estava em ordem. Mudou enlatados de lugar, conferiu o prazos de validade de alguns alimentos, despejou um saquinho de farinha de mandioca numa tigela de plástico, separou um pacote de macarrão para o jantar... Ao pensar em fazer macarronada para o jantar, lembrou-se de uma garrafa de vinho que tinha sido comprada na noite anterior pelo marido. Abriu a garrafa. Correu ao escritório. Puxou pelo cabelo do ladrão até erguer a cabeça dele à altura do seu ombro, de modo que a cabeça inconsciente ficasse segura pelo seu braço esquerdo. Não era fácil manusear essa cabeça. Era pesada. Mas conseguiu erguê-la de tal maneira que pudesse despejar-lhe vinho pela boca. Com a mão esquerda, com muito mau jeito, abriu a boca do homem. Com a mão direita despejou o vinho pela boca dele, na esperança de que houvesse um resquício de consciência naquela mente e de modo que o vinho aliviasse um pouco a dor da morte. O arranjo todo desajeitado do manuseio da garrafa e do apoio da cabeça atrapalhava a tarefa, mesmo porque Lu estava com o próprio rosto muito próximo do rosto do rapaz. O nariz e a testa dele estavam sujos de sangue, escorrido pela boca; o sangue certamente era ocasionado por alguma hemorragia interna, causada pelo longo tempo de esforço brutal na tentativa de desentalar.
E enquanto tentava introduzir o vinho anestésico, Lu pensava no sangue que afinal manchavam seu carpete, as cortinas e o rosto do invasor. De onde vinha todo esse sangue? Erguia a cabeça, introduzia a garrafa boca adentro do rapaz. Sentia-se incomodada por ver que todo esforço parecia inútil. O vinho não era engolido. Acabava caindo e sujando mais ainda o carpete. Talvez não estivesse conseguindo erguer a cabeça de modo adequado. Mas já não havia força para manobrar a cabeça e ao mesmo tempo abrir a boca do pobre. Tentou mais vezes, impulsionou a cabeça para o alto, manteve a boca aberta. Mandou vinho lá para dentro. Quase tudo que era colocado pela boca acabava saindo de volta. “Não é possível que o infeliz já esteja morto!”
Metade da garrafa de vinho foi usada nesse processo de tentar injetar a bebida pela garganta do invasor, que aliás não engolia nem reagia às investidas de Lu porque não demonstrava qualquer sinal vital. Cansada a dona de casa desistiu de querer aliviar o sofrimento do desconhecido. Largou a cabeça e o busto pendentes na sua vidraça.
Voltou para a cozinha e um sentimento de impotência veio visitar-lhe. Poderia, se fosse mais eficiente, ter pelo menos tornado a morte do rapaz menos dolorosa. Mas não. Havia se ocupado tanto com tantas bobagens e se esquecera do principal. Agora restava somente chamar a polícia e tomar as devidas providências que tomaria se tivesse acabado de descobrir um homem preso na sua vidraça, numa tarde de um dia que, por uma série de motivos, passara fora de casa o tempo todo.
Antes porém era preciso ter certeza da morte do rapaz. Pois uma equipe de resgate poderia ser capaz de salvá-lo ainda. Era preciso voltar ao corpo. Luciana pegou uma lanterna e correu ao escritório. O busto, os braços e a cabeça permaneciam voltados para o chão, imóveis e pendentes na parede. Pela vidraça se via que a parte do lado de fora também estava paralisada. Luciana se aproximou, agachou-se, ficou de joelhos diante do busto. Encolheu-se à parede para conseguir focalizar o rosto do rapaz. A cabeça virada para baixo dificultava o trabalho. Enquanto uma mão empunhava a lanterna na direção dos olhos, a outra mão ia com os dedos trêmulos abrir as pálpebras. A lanterna clareando os olhos mostrou que já não havia mais vida ali. De qualquer forma Lu buscou uma veia do pescoço. Mediu pulsação. Verificou que não sentia nada. “Só pode estar morto”.
Levantou-se. Saiu depressa e no corredor sentiu o mesmo calafrio que horas antes anunciava a febre alta. Antes que desmaiasse de novo, era preciso tomar as providências. Finalmente ligou para a polícia. Com a voz trêmula, sem que para isso fosse preciso interpretar pois a voz de fato estava alterada, e contou o que presenciava na sua casa. Depois de desligar o telefone e atender às recomendações da polícia, olhou para o relógio... quase seis e meia da tarde, hora do fim de expediente de Armando, hora de ligar para ele e contar sobre a tentativa de invasão da casa do casal.
A polícia chegou e imediatamente a casa foi cercada. A vizinhança abriu as janelas e se concentrou na casa do casal que três meses antes se mudara para o endereço. Um ferreiro foi chamado para serrar as barras de ferro da vidraça. Uma equipe de socorro equipou o corpo com oxigênio, ataduras para os ferimentos e outras emergências, embora já se constatasse a morte do invasor.
Armando chegou pouco depois da polícia. Procurou Luciana para ampará-la, pois presumiu que ela estivesse em estado de choque, conforme, aliás, um dos policiais declarou assim que Armando anunciou-se marido da dona da casa. Luciana refugiou-se nos braços do marido enquanto acompanhava com ele todo o trabalho das equipes.
O corpo do rapaz foi retirado da parede e colocado numa maca. Uma lona azul marinho cobriu o corpo que foi levado para fora da casa. Aos olhos dos vizinhos, um pequeno comboio de carros pertencentes às autoridades seguiu em grupo levando o corpo para algum lugar onde as autoridades investigariam as circunstâncias daquela morte.
Armando, sempre abraçado à mulher, ainda olhou para os curiosos e fez um aceno como quem diz: acabou.
O casal entrou. Luciana precisava manter a impressão que vinha causando no marido: a ideia de que só poucas horas antes soubera daquele corpo preso na vidraça.
_ Meu deus... – ele disse, acariciando a cabeça da mulher – Que risco você correu, Lu! Sozinha nessa casa, junto com um bandido... Ele podia ter conseguido sair dali e fazer algum mal a você...
E Lu, antecipando-se a qualquer coisa:
_ Ainda bem que hoje eu fiquei fora de casa o dia todo...
_ É mesmo? – disse ele recordando-se dos telefonemas trocados com a mulher durante o dia, nos quais falaram sobre compromissos de Lu nesse dia. E Armando acabaria assimilando a versão de Lu sobre sua descoberta do invasor: a mulher só o descobrira no final da tarde, depois de voltar para casa, vinda da reunião com o médico Roberto Vasconcelos, e depois de passar algum tempo arrumando o armário da cozinha.
Contudo, no decorrer dos dias Armando ensaiaria diversas vezes tocar num assunto que o incomodava. Quando Lu notou que o marido parecia querer lhe perguntar algo, ficou profundamente incomodada e tratou de enfrentar logo a desconfiança:
_ O que ainda não tá claro pra você sobre o invasor, Armando? O que você quer saber sobre aquele dia?
_ O carpete... – ele disse, meio sem jeito.
_ Que tem o carpete?
_ Tinha sangue no carpete do escritório.
_ Meu amor, você ouviu os policiais. O rapaz sofreu uma hemorragia. Colocou sangue pela boca...
_ Mas tinha alguma coisa esquisita naquele sangue... O cheiro de vinho. Também tinha vinho no carpete?
_ Cheiro de vinho? – ela se arrependeu por ter dado chance ao marido de dizer o que pensava.
E ele:
_ Eu senti o cheiro de vinho assim que entrei no escritório.
Mas Lu contornaria essa discussão, sem a menor dificuldade. Afinal ela era uma mulher do lar. E Armando mantinha-se sempre muito ocupado com as coisas do seu trabalho.

sábado, 8 de outubro de 2011

Outsiders


Acabei de escrever um conto (se bem que longo demais pra ser conto) chamado OUTSIDERS.
Na verdade era para eu estar ocupada com a revisão de A PERFORMANCE e com a continuação de A POLÍTICA SEGUNDO DANI SCARPINI, um romance que já está bem desenvolvido, mas passa por uma terrível travessia de primeira para segunda parte.
Essa travessia já dura semanas.
Mas aí surgem essas novas personagens, que vêm não sei de onde...
A vida de escritora não é fácil. Não para mim, que detesto invasões.
O que fazer? Pensar no lançamento do ATO PENITENCIAL? Dedicar meu tempo ao DANI SCARPINI ou me entregar a essas vampiras, que começam com OUTSIDERS mas continuam em outros textos.
Há quem diga que essas questões são coisas de gente bitolada. Às vezes acho que sou realmente muito bitolada.
Mas a literatura não precisa disso, ela precisa de liberdade. Ela precisa respirar. Ela precisa de espaço e de ar.
Nós precisamos de ar.
na foto retirada da Web, uma cena do filme The Full Monty. Talvez uma inspiração para pensar em outsiders.

domingo, 2 de outubro de 2011

release



ATO PENITENCIAL

O romance ATO PENITENCIAL, de Regina Baptista, busca uma releitura do mito de Fausto.
O mito de Fausto surgiu no século XVI e atravessou a história do Ocidente moderno, atormentando e inquietando, através de várias obras. O homem que vendeu a alma ao demônio em troca do domínio sobre a ciência chega ao século XXI questionando sua ação. Pois foi com essa sede de conhecimento que ele acabou descobrindo melhor a si próprio. Fausto sabe que o que importa agora não é mais a quem pertencerá sua alma: se a Deus ou ao Demônio.
O que importa agora é saber o que é essa alma.
O Fausto pós-Psicanálise vive num mundo esgotado de utopias políticas, mas enraizado nas promessas do Iluminismo. A Ciência volta a dividir espaço com a Fé. E esta nova Fé é manifestada, muitas vezes, como busca por respostas rápidas.
Não por acaso, o Fausto de ATO PENITENCIAL é um padre católico. Nada mais atraente para o Demônio do que um sacerdote estressado.