quinta-feira, 28 de outubro de 2010

crescer é preciso, e de qualquer jeito

Diário de Estefânio Marchezini

26 de agosto de 2005

Minha última ceia foi definitiva, eu diria. Nela comunguei da contradição, essa contradição que me cobre, que um cobre um jovem que acaba de fazer dezoito anos de idade nesse novo século... A contradição que impõe anos de história e ao mesmo tempo lembra que os tempos atuais sugerem “disciplina”... É a confusão entre emoção e razão. Nessa ocasião, o comedor também é comido e sente os dentes do mundo na sua coxa, mordendo com força e ameaçando não largar enquanto esse jovem não abrir mão de seu ninho.
Fui da loucura até os registros civilatórios em busca de licença para prosseguir na minha decisão de crescer, e a encontrei. Estive bem perto de ambas - loucura e sensatez - e nas duas encontrei uma recepção amistosa. Acho que não será tão difícil viver, talvez seja mais fácil do que eu esperava. Eu, como desajustado reconhecido, temia que o mundo me enxotasse do seu território por não ver em mim esperança de adaptação. Mas, ao contrário, fui bem recebido. Quanto à loucura... até parece que já nos conhecíamos de longa data. Aliás, ela estava há muito tempo nos meus sonhos e nos finos fios de sangue que rompem das pontas de meus dedos quando os sacrifico com estilete ou gilete. Toda vez que durmo, eu a tenho comigo. Assim, não foi nada difícil o encontro que eu tanto aguardava. Minha prova de sobrevivência...

29 de agosto de 2005

Ouço tudo que me jogam nas orelhas. Não posso evitar tanta informação. Elas são determinantes e meus ouvidos, passivos. Quando rejeito algo, tenho que carregar o peso da culpa pela rejeição. Essa é uma época complicada.
Toda época tem sua complicação.
A minha época sofre com a pressa. Minha época sofre com a incapacidade de se digerir os elementos-alimentos direito. Não se consegue sair ileso e ao mesmo tempo, desculpado, dessa geringonça.

02 de setembro de 2005

Eu acho que estou me envolvendo com alguém. Eu não estaria tão perdido nessa vida de Deus por causa de uma notícia onde o protagonista sou eu, ainda que na condição de vilão odiado por todo mundo como a criatura que beijou as botas do Tio Sam... eu não estaria assim se não estivesse suspeitando da minha frieza, minha defesa.
Minha defesa... minha frieza... a proteção contra o mundo... mas ao fechar os olhos para o mundo, se perde a chance de ver também o que procuro; a proteção contra o mundo é também a omissão do amor... Será que estou amando? Não importa. Hoje, uma sexta-feira, foi só a primeira visita à casa; só um reconhecimento de território, com a promessa minha – e o convite bem humorado delas – de visitá-las outra vez e dessa vez, passar mais tempo, ficar mais íntimo.

03 de setembro de 2005

Estou sempre tentando me reinventar. Eis um problema social dos mais graves. Um sujeito como eu nunca está satisfeito com que vê quando acorda e acha que o mundo vai acabar dali a três segundos. E faz a contagem regressiva, e conta de novo, e de novo.
Quando tenta se concentrar, vê nisso algo tão sagrado que até um espirro de um vizinho o descontrola. Qualquer ruído o faz bicho, nervoso, garras enrijecidas, cérebro tumultuado, sangue fervido.
Um sujeito como eu precisa do deserto.
O deserto é infertilidade, mas também é sossego. E é preciso sossego para germinar. O deserto é fertilidade neurótica, fora dos padrões de fertilidade que se dão em terra boa, saudável.

05 de setembro de 2005

Às vezes me pergunto por que Valéria, aquela professora de português que parece ter saído de um manual de sobrevivência para os dias atuais, gosta tanto de me expor? Eu estou quieto no meu canto e é só aparecer uma chance, para ela me apontar e dizer à classe: “Eu já teria desistido de ser professora se não fosse por alunos como o Estefânio, que está sempre de boca fechada”. Naturalmente Valéria estava se queixando da algazarra que é comum na sua aula. E se eu pudesse abrir a boca, diria a ela que me sinto despido à força toda vez ela me põe como exemplo; meu cérebro sofre um choque elétrico de alta tensão e meu rosto cai. Tem sido assim sempre, toda essa violência, toda essa tortura... a sala de aula com mais de quarenta jovens da minha idade ou um ou dois anos mais novos que eu... meus colegas! Tem sido assim. Não consigo fugir quando me prendem, quando me pegam desprevenido. Minha inteligência e sensibilidade são surradas até eu acreditar, ou mais do que isso, até eu adorar o chicote. Ser declarado um bom exemplo tem um preço muito alto que não é pago imediatamente mas é cobrado no futuro, com juros e correção; no entanto, os títulos de cobrança já ardem nas mãos. Para o alívio, tem-se a esperança de que o mundo acabará logo mas que antes disso, todos os desafetos ficarão fechados juntos num mesmo cômodo pelo menos por dois ou três meses, para no final, o tribunal do Juízo Final ganhar a certeza de que valeu a pena investir na humanidade.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Voltando a Estefânio/Zeus

No ato da criação muitas vezes nos sentimos dominados pela própria obra. Já não conseguimos controlar os pensamentos que ela nos leva a aprofundar. Assim, a ficção expande os limites do que era conhecido de relance e obriga o ficcionista a encarar o objeto do seu discurso com a tensão de um confronto definitivo. É assim que a minha obra se apresenta a mim quando a dou por concluída; nesse ponto já não tenho a independência de autora mas me transporto para o mar agitado da minha ficção em cujas águas terei que nadar exaustivamente até alcançar uma ilha. A ilha... o real que habitava em silêncio dentro de mim e que fora despertado pela ficção.
Nessa difícil travessia o romance é sem dúvida, para mim, o mais implacável dos gêneros literários. Dos romances que tenho como prontos, um deles ainda movimenta meu pensamento e minha reflexão estética: ATO PENITENCIAL, recentemente concluído. Mas os dias correm, as coisas acontecem e nossa mente trabalha sem parar; assim outros títulos ganham minha atenção: estou falando CRONOS ou DIÁRIO DE UM NEURÓTICO, que vem sendo postado/publicado por partes neste blog.
O que me fez associar o momento real atual com o drama do jovem protagonista Estefânio (o Zeus que se rebela contra o pai Cronos - ou Chronos?) foi a discussão em torno do tema do aborto, motivada por circustâncias político-eleitorais. Meu Estefânio, ao meu ver, vem de encontro ao tema desse "despreparo" paternal e maternal para gerar um filho. Meu Estefânio não fora abortado mas sente-se engolido pelo pai (a geração que o precede). Ambas as situações me parecem semelhantes. Matar ou engolir um filho é igualmente um ato de privar-lhe o direito e a chance de mudar o futuro.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Chonos e Fausto

Ainda existe uma longa jornada a ser concluída pelo protagonista-narrador de CHRONOS ou DIÁRIO DE UM NEURÓTICO (são 170 páginas no total). Mas já nem sei se devo continuar com essa narrativa depois de ter concluído o ATO PENITENCIAL. É que a mim parece que CHRONOS ficou "fraquinho" perto do ATO. O interessante é que ambos os textos são originados mais ou menos na mesma época, por volta de 2006. Só que o CHRONOS que estou apresentando aqui está quase inalterado, enquanto que o ATO sofreu uma enorme intervenção nesses útimos três meses. Intervenções essas não só na composição do texto como na admissão de novos elementos, sendo o principal deles o mito de Fausto. Com essa interferência houve uma reavaliação da primeira ideia e o resultado final tornou o romance - acho - muito melhor. Essa nova versão conservou, do texto de 2006, o aspecto fragmentado, a narrativa não linear, e sobretudo o conflito interno do protagonista, Fausto (ex-César). Vale lembrar que esse conflito interno foi amplamente enriquecido com a adoção do mito faustiano.