domingo, 12 de dezembro de 2010

um pouco de arte contemporânea

há poucos dias descobri um trabalho chamado "the killing machine", da artista Janet Cardiff
trata-se de uma impressionante instalação inspirada no conto "Na Colônia Penal", de Franz Kafka

eis o trabalho em vídeo:

http://www.youtube.com/watch?v=5htpyrUzZUs

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Manifesto sobre princípios básicos para o escritor

1 - O escritor deve preservar a vida
  • sempre que houver oportunidade, zelará pelas condições naturais de preservação da vida
  • evitará a destruição e a autodestruição

2 - O escritor defenderá a criação acima de qualquer coisa

  • a criação da natureza será sempre bem acolhida
  • a criação artística, própria e de outros artistas, será acolhida, refletida e criticada
  • as criaturas em geral serão sempre acolhidas e contempladas

3 - O escritor defenderá obras mesmo que a seu critério tiverem apelos comerciais

  • isso não significa que essa defesa seja um ato de legitimação
  • obras com apelos meramente comerciais não devem ser legitimadas pelo escritor, apenas vislumbradas com silêncio e atenção

4 - O escritor defenderá a liberdade de expressão

  • defender a liberdade de expressão significa estar sempre disponível à discussão sobre ideias expressas

5 - O escritor deve evitar criar obras com propósitos meramente lucrativos

6 - O escritor que não conseguir sobreviver materialmente das letras, trabalhará em qualquer ofício, desde que este lhe reserve um tempo diário para a criação

7 - É fundamental para o escritor ter tempo para escrever e para viver a preguiça e o ócio

  • a preguiça e o ócio não devem ser vistos como vergonha pelo escritor
  • a preguiça e o ócio são amigos dos escritor
  • a preguiça e o ócio providenciam ideias lúcidas e claras
  • a preguiça e o ócio permitem à mente vagar sem esforço pelo pensamento e pelo sentimento

8 - É fundamental para o escritor ter tempo para cochilar, dormir, sonhar e ter pesadelos

  • o cochilo, o sono, os sonhos e os pesadelos são amigos do escritor
  • o cochilo, o sono, os sonhos e os pesadelos favorecem a mente, o espírito, o corpo e a visão do escritor sobre a vida e sobre o mundo
  • um escritor jamais acorda outro escritor, a não ser quando o que está dormindo estiver sob algum perigo sem saber
  • os sonhos e os pesadelos devem ser recebidos como bens pelo escritor, mesmo quando, durante o sonho, houver sofrimento

9 - O escritor sempre evitará remédios para mudar seu humor

  • a química de remédios na manutenção dos sentimentos (depressão, ansiedade, insônia e afins) será sempre vista com suspeita e desconfiança pelo escritor
  • durante o sofrimento o escritor evitará a criação, dedicar-se-á apenas às fontes do seu sofrer, para só mais tarde usar sua reflexão na construção de uma obra

10 - Os bloqueios criativos temporários devem ser tratados com serenidade e sem desespero

  • bloqueios temporários podem ser úteis para a reavaliação da obra e da vida do escritor
  • as causas do bloqueio devem ser examinadas pelo escritor, sozinho; mas se o tempo de bloqueio se prolongar e o escritor sentir que não haverá volta à criação, então partilhará seu drama com alguém que o compreenda

11 - A mente humana e seus mistérios devem estar sempre na pauta do conhecimento a ser adquirido pelo escritor

  • independentemente da sua formação acadêmica, o escritor sempre procurará aprender sobre a mente humana
  • o escritor estará aberto e atento ao contato com mentes especiais, jamais evitará conversa com os chamados deficientes mentais, ao contrário, tentará se corresponder com a comunicação deles
  • o escritor será solícito e paciente com as falas e comportamentos de deficientes mentais, crianças pequenas e todos os casos em que há prejuízo na consciência

12 - O escritor buscará conhecimento continuamente

  • independentemente da sua formação acadêmica, o escritor buscará conhecer a história, a sociedade, a economia, a política, a lei, a cultura e os costumes dos povos

13 - É importante para o escritor conhecer ao menos uma língua estrangeira

14 - É importante para o escritor ler ao menos alguns clássicos da literatura universal

15 - É importante para o escritor pesquisar a teoria, a crítica, a estética literária

16 - É importante para o escritor participar com frequência de eventos culturais sobre literatura e sobre as demais artes

17 - O escritor zelará pela sua biblioteca pessoal como se zelasse por um jardim (mas sem jogar água)

18 - O escritor conversará com outro escritor sobre literatura, família, trabalho, namoro, futebol, política, mercado, doenças, clima, animais e notícias de jornal

19 - O escritor conversará com não-escritores sobre família, trabalho, namoro, futebol, política, mercado, doenças, clima, animais e notícias de jornal

  • na primeira oportunidade, o escritor falará com o não-escritor sobre literatura

20 - O escritor cuidará da sua integridade física para que os males do corpo não interfiram na criação

  • para o escritor os olhos são prioridade absoluta

21 - O melhor exercício físico para o escritor é a caminhada

  • enquanto caminha, o escritor pode deixar a mente respirar à vontade
  • o escritor também cuidará da respiração dos pulmões

22 - O escritor deve ser discreto mas também transparente

  • é importante revelar o que realmente pensa
  • é importante não chorar em público

domingo, 28 de novembro de 2010

Estefânio, chega!

Este blog interrompe agora a publicação de "Cronos ou Diário de um Neurótico" - que tem muito texto chato pela frente - e fica à disposição de outros projetos.
Isso não quer dizer que estou matando Estefânio Marchezini, mesmo porque ele é imortal. Estou apenas adiando a publicação do romance (na íntegra).

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

núcleo Ribeirão Preto da UBE

Estefânio que me desculpe, mas terei que interromper seu discurso mais uma vez. Agora o assunto é a criação do núcleo da UBE (União Brasileira de Escritores) em Ribeirão Preto, da qual tenho a honra de participar. O núcleo foi criado por Menalton Braff e tem como integrantes o próprio Menalton, Roseli Braff, Eliane Ratier, Mara Senna, Ely Vieitez e eu. O objetivo do núcleo é dinamizar a UBE em Ribeirão Preto, entre outros projetos. Estamos em estágio de iniciação de tudo, formulando ideias, divulgando o núcleo, mas creio que será muito boa a empreitada.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

crescer é preciso, e de qualquer jeito

Diário de Estefânio Marchezini

26 de agosto de 2005

Minha última ceia foi definitiva, eu diria. Nela comunguei da contradição, essa contradição que me cobre, que um cobre um jovem que acaba de fazer dezoito anos de idade nesse novo século... A contradição que impõe anos de história e ao mesmo tempo lembra que os tempos atuais sugerem “disciplina”... É a confusão entre emoção e razão. Nessa ocasião, o comedor também é comido e sente os dentes do mundo na sua coxa, mordendo com força e ameaçando não largar enquanto esse jovem não abrir mão de seu ninho.
Fui da loucura até os registros civilatórios em busca de licença para prosseguir na minha decisão de crescer, e a encontrei. Estive bem perto de ambas - loucura e sensatez - e nas duas encontrei uma recepção amistosa. Acho que não será tão difícil viver, talvez seja mais fácil do que eu esperava. Eu, como desajustado reconhecido, temia que o mundo me enxotasse do seu território por não ver em mim esperança de adaptação. Mas, ao contrário, fui bem recebido. Quanto à loucura... até parece que já nos conhecíamos de longa data. Aliás, ela estava há muito tempo nos meus sonhos e nos finos fios de sangue que rompem das pontas de meus dedos quando os sacrifico com estilete ou gilete. Toda vez que durmo, eu a tenho comigo. Assim, não foi nada difícil o encontro que eu tanto aguardava. Minha prova de sobrevivência...

29 de agosto de 2005

Ouço tudo que me jogam nas orelhas. Não posso evitar tanta informação. Elas são determinantes e meus ouvidos, passivos. Quando rejeito algo, tenho que carregar o peso da culpa pela rejeição. Essa é uma época complicada.
Toda época tem sua complicação.
A minha época sofre com a pressa. Minha época sofre com a incapacidade de se digerir os elementos-alimentos direito. Não se consegue sair ileso e ao mesmo tempo, desculpado, dessa geringonça.

02 de setembro de 2005

Eu acho que estou me envolvendo com alguém. Eu não estaria tão perdido nessa vida de Deus por causa de uma notícia onde o protagonista sou eu, ainda que na condição de vilão odiado por todo mundo como a criatura que beijou as botas do Tio Sam... eu não estaria assim se não estivesse suspeitando da minha frieza, minha defesa.
Minha defesa... minha frieza... a proteção contra o mundo... mas ao fechar os olhos para o mundo, se perde a chance de ver também o que procuro; a proteção contra o mundo é também a omissão do amor... Será que estou amando? Não importa. Hoje, uma sexta-feira, foi só a primeira visita à casa; só um reconhecimento de território, com a promessa minha – e o convite bem humorado delas – de visitá-las outra vez e dessa vez, passar mais tempo, ficar mais íntimo.

03 de setembro de 2005

Estou sempre tentando me reinventar. Eis um problema social dos mais graves. Um sujeito como eu nunca está satisfeito com que vê quando acorda e acha que o mundo vai acabar dali a três segundos. E faz a contagem regressiva, e conta de novo, e de novo.
Quando tenta se concentrar, vê nisso algo tão sagrado que até um espirro de um vizinho o descontrola. Qualquer ruído o faz bicho, nervoso, garras enrijecidas, cérebro tumultuado, sangue fervido.
Um sujeito como eu precisa do deserto.
O deserto é infertilidade, mas também é sossego. E é preciso sossego para germinar. O deserto é fertilidade neurótica, fora dos padrões de fertilidade que se dão em terra boa, saudável.

05 de setembro de 2005

Às vezes me pergunto por que Valéria, aquela professora de português que parece ter saído de um manual de sobrevivência para os dias atuais, gosta tanto de me expor? Eu estou quieto no meu canto e é só aparecer uma chance, para ela me apontar e dizer à classe: “Eu já teria desistido de ser professora se não fosse por alunos como o Estefânio, que está sempre de boca fechada”. Naturalmente Valéria estava se queixando da algazarra que é comum na sua aula. E se eu pudesse abrir a boca, diria a ela que me sinto despido à força toda vez ela me põe como exemplo; meu cérebro sofre um choque elétrico de alta tensão e meu rosto cai. Tem sido assim sempre, toda essa violência, toda essa tortura... a sala de aula com mais de quarenta jovens da minha idade ou um ou dois anos mais novos que eu... meus colegas! Tem sido assim. Não consigo fugir quando me prendem, quando me pegam desprevenido. Minha inteligência e sensibilidade são surradas até eu acreditar, ou mais do que isso, até eu adorar o chicote. Ser declarado um bom exemplo tem um preço muito alto que não é pago imediatamente mas é cobrado no futuro, com juros e correção; no entanto, os títulos de cobrança já ardem nas mãos. Para o alívio, tem-se a esperança de que o mundo acabará logo mas que antes disso, todos os desafetos ficarão fechados juntos num mesmo cômodo pelo menos por dois ou três meses, para no final, o tribunal do Juízo Final ganhar a certeza de que valeu a pena investir na humanidade.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Voltando a Estefânio/Zeus

No ato da criação muitas vezes nos sentimos dominados pela própria obra. Já não conseguimos controlar os pensamentos que ela nos leva a aprofundar. Assim, a ficção expande os limites do que era conhecido de relance e obriga o ficcionista a encarar o objeto do seu discurso com a tensão de um confronto definitivo. É assim que a minha obra se apresenta a mim quando a dou por concluída; nesse ponto já não tenho a independência de autora mas me transporto para o mar agitado da minha ficção em cujas águas terei que nadar exaustivamente até alcançar uma ilha. A ilha... o real que habitava em silêncio dentro de mim e que fora despertado pela ficção.
Nessa difícil travessia o romance é sem dúvida, para mim, o mais implacável dos gêneros literários. Dos romances que tenho como prontos, um deles ainda movimenta meu pensamento e minha reflexão estética: ATO PENITENCIAL, recentemente concluído. Mas os dias correm, as coisas acontecem e nossa mente trabalha sem parar; assim outros títulos ganham minha atenção: estou falando CRONOS ou DIÁRIO DE UM NEURÓTICO, que vem sendo postado/publicado por partes neste blog.
O que me fez associar o momento real atual com o drama do jovem protagonista Estefânio (o Zeus que se rebela contra o pai Cronos - ou Chronos?) foi a discussão em torno do tema do aborto, motivada por circustâncias político-eleitorais. Meu Estefânio, ao meu ver, vem de encontro ao tema desse "despreparo" paternal e maternal para gerar um filho. Meu Estefânio não fora abortado mas sente-se engolido pelo pai (a geração que o precede). Ambas as situações me parecem semelhantes. Matar ou engolir um filho é igualmente um ato de privar-lhe o direito e a chance de mudar o futuro.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Chonos e Fausto

Ainda existe uma longa jornada a ser concluída pelo protagonista-narrador de CHRONOS ou DIÁRIO DE UM NEURÓTICO (são 170 páginas no total). Mas já nem sei se devo continuar com essa narrativa depois de ter concluído o ATO PENITENCIAL. É que a mim parece que CHRONOS ficou "fraquinho" perto do ATO. O interessante é que ambos os textos são originados mais ou menos na mesma época, por volta de 2006. Só que o CHRONOS que estou apresentando aqui está quase inalterado, enquanto que o ATO sofreu uma enorme intervenção nesses útimos três meses. Intervenções essas não só na composição do texto como na admissão de novos elementos, sendo o principal deles o mito de Fausto. Com essa interferência houve uma reavaliação da primeira ideia e o resultado final tornou o romance - acho - muito melhor. Essa nova versão conservou, do texto de 2006, o aspecto fragmentado, a narrativa não linear, e sobretudo o conflito interno do protagonista, Fausto (ex-César). Vale lembrar que esse conflito interno foi amplamente enriquecido com a adoção do mito faustiano.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

ato penitencial

Acabei o livro.
Depois de tantas alterações na primeira versão, de 2006, e depois de uma grande reformulação... finalmente dou o romance por acabado.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

mais um romance está se construindo

Tenho estado super ocupada com a revisão (ou seria a reescrita) de um livro que criei em 2006. Ao longo dos últimos anos eu já fiz mil alterações nele. Mas de uns 2 ou 3 meses para cá as mudanças foram bruscas. É que em meio a algumas leituras, me dei conta de que o protagonista daquele livro de 2006 tinha muito do Fausto (do mito de Fausto, já explorado por grandes nomes da literatura universal). Então me ocorreu a ideia de assumir de vez que havia um Fausto na minha gaveta. Assim, mergulhei mais uma vez no texto, já tão revisado, e repensei o livro... Na verdade, a versão nova é praticamente um texto novo, de tantas alterações. Mas o espírito proposto desde o início ainda é o mesmo. Aliás, o título também é o mesmo do texto original: ATO PENITENCIAL.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O circo de horrores

Diário de Estefânio Marchezini

13 de agosto de 2005

O tempo que perco com pessoas, fatos e suas consequências não me retornará na forma de nada que seja vital, ao contrário, só prejudica os possíveis esforços que faço para me manter íntegro. Pois esse tempo quase sempre é preenchido por um pensamento contaminado pelas próprias circunstâncias que prezam e anseiam pelo meu deslocamento até aquelas pessoas, fatos e suas consequências, de modo a ganhar minha adesão ou derrotar a minha postura, de acordo com o que minha figura representa naquele porco ringue de lutadores mascarados.
E eu, lamentavelmente, mesmo percebendo tudo, acabo me deixando tomar pela mão suja de lama dos patrocinadores do circo.
Quero me libertar desse sentimento. Quero parar de pensar com raiva; quero deixar que conspirem contra mim, que me julguem à minha revelia. Que se dane tudo! Não há nada aqui, nesse mundinho de adolescentes metidos, que possa me servir ao crescimento. E o que pode parecer nocivo a mim, só o será se eu assim o considerar; e eu só o considerarei se cair na armadilha do sistema dessa turma.
Devo ser portanto como o romântico, o ingênuo, o esquizofrênico, ou o egocêntrico. Devo ser só!

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

a neurose de Estefânio

Durante o tempo em que compus "Diário de Um Neurótico", eu perguntava, afinal, qual era o problema de Estefânio. Por que aquele medo profundo? Qual a origem de tanta impotência diante da maioridade?
Com o desenvolvimento da personagem, procurei explorar a ideia de uma geração "engolida" pela geração anterior. Essa foi a saída para o protagonista compreender seu deslocamento e seu gigante temor diante do que o mundo espera dos adultos. Daí veio a imagem do mito grego Cronos, que engolia os filhos ao nascerem. Estefânio se declara consciente sobre sua "doença", e entende que não se trata apenas de um caso isolado: ele é fruto de uma geração onde os pais e tutores, em nome da proteção aos filhos, anulam neles o pensamento, a ação, a vontade ou conduzem tudo de modo a poupá-los o máximo possível.
A relação com o tempo passa a ter um papel especial na figura do neurótico: Estefânio sabe que para agir, tomar decisões, fazer planos, tomar iniciativas, terá sempre que atravessar a barreira do distúrbio, o que lhe tomará mais tempo em relação àqueles que agem com mais segurança e equilíbrio.
Eis o perfil que traço do meu protagonista. Não creio que ele seja de todo uma fábula. Acho que Estefânio representa bem uma boa parte da geração de jovens hoje. E quanto a nós, sua geração antecedente, temos grande responsabilidade nesse estado de coisas.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Talvez, um amigo

Diário de Estefânio Marchezini

12 de agosto de 2005

O Dani é um cara que poderia ser meu amigo se ele quisesse. Porque eu, por mim, seria amigo dele. Estamos na mesma sala desde a oitava série mas nunca trocamos mais do três ou quatro palavras porque nossas diferenças de personalidade são gritantes. Eu sou o cara caladão, bonzinho, que faz todas as lições de casa; Dani está sempre nos centros das rodas de garotos e garotas. É o cara que sempre fala mais alto, nunca está sozinho, é sempre o líder de qualquer grupo de pesquisa ou do time de basquete, futebol, vôlei... Eu sempre tive uma impressão interessante sobre ele... pelo menos até hoje. Sempre o achei um cara legal, sintonizado, atento às novidades, bem resolvido. Enfim, sempre o invejei quando sofria e sofro ainda com meu deslocamento, meu isolamento involuntário.
Mas hoje Dani e eu nos falamos por um bom tempo e pela primeira vez e infelizmente meu conceito sobre ele, depois desse contato, mudou radicalmente. Nos encontramos na cantina da escola, na hora do recreio. Ele se sentou na minha mesa porque não viu nenhuma outra vazia. Acabamos conversando. Ele começou dizendo que estava angustiado e foi logo despejando o motivo de sua angústia como se eu fosse seu amigo íntimo. Eu pensei: “Caramba, o Dani angustiado?!” Sempre vi esse cara como um cara poderoso, do tipo... “não tenho problemas”. Mas, para minha surpresa, o Dani me confidenciou coisas que, se fosse comigo, eu não teria coragem de dividir com um desconhecido, o que me dá uma boa sensação de normalidade porque tenho certeza que a maioria das pessoas pensaria como eu.
Não sei porque Dani fez isso, quero dizer, porque ele se abriu comigo, sendo que nós nunca fomos íntimos. Talvez faça parte do temperamento dele agir assim, falar de coisas de casa, da família, com o primeiro que aparece; ou então a exclusividade não esteja nele mas em mim; talvez Dani tenha procurado alguém fechado em si, dotado apenas de ouvidos e não de língua, e viu em mim o ouvinte perfeito.
Ao se apresentar, Dani me surpreendeu dizendo que já tinha ouvido falar de mim:
_ Todo mundo diz que você nunca se enturma. Por quê?
Eu, constrangido até os ossos, respondi:
_ Deve ser porque sou muito calado.
Confesso que procurei mas não achei resposta melhor. Ainda bem que ele pareceu não ter prestado atenção no que eu disse e perguntou:
_ A gente pode conversar um pouco?
Eu respondi que sim. E foi aí que Dani começou a falar. Disse que tinha acabado de fazer uma coisa inusitada. Eu fiquei calado, atento mas sem demonstrar curiosidade, embora estivesse curioso. Ele foi em frente:
_Acabei de ter uma conversa séria com o suposto e muito provável amante de minha mãe... Não foi um encontro fácil... não foi fácil enfrentar aquele cara... Sabe o que significa encarar o amante da própria mãe, cara?
Eu fiquei quieto, esperando aparecer algo mais inusitado, pois na verdade eu aguardava uma história diferente, mais misteriosa, mais escandalosa ou mais dramática. Dani fez uma pausa como se me dissesse “o que você acha disso?”. Como ele não desembuchava eu disse:
_Então você enfrentou o cara?
_Enfrentei. Eu não me intimidei, disse tudo numa tacada só, não dei chance nem dele pensar. Ele deve estar tonto até agora. Eu deixei bem claro para esse sujeitinho que ele não está lidando com idiotas, entendeu? O filho da puta deve estar, nesse momento, terminando o romance com a minha mãe. Pois eu tenho certeza que ele não vai ter cara de pau de continuar essa aventura depois de tudo que eu disse.
Antes que aquele babaca continuasse se vangloriando eu quis tirar uma dúvida:
_ Mas a sua mãe estava correspondendo?
E ele:
_ Que diferença faz? Ela é uma mulher casada, cara, tem um filho, eu; tem casa pra cuidar. Ela é minha mãe, caralho!
Eu não conseguia acreditar no que ouvia. O cara que eu achava ser tão maluco não passava de um imbecil. Ele não me perguntou mas eu quis expressar minha opinião para que ele se afastasse de mim o quanto antes.
_ Eu não me meteria numa história que não é minha... Se fosse comigo, eu deixava minha mãe se virar... É assunto dela... Ela é que tem que resolver...
Foi a vez do Dani ficar perplexo:
_ Espera aí, cara, você não está entendendo. Quando o pai da gente dá umas pulada de cerca, a gente até entende, mas eu estou falando da mãe, entendeu? Da minha mãe. Ela bem que tentou usar essa história de que meu pai é infiel, que ele usa o casamento por conveniência, que ele também tem uma amante, mas você não acha que a gente tem que aguentar essa balela, não é?
E eu:
_ Eu não acho nada, não conheço seus pais, não conheço os amantes deles.
Aí então, perdi o apetite. Eu, que estava na metade de um cachorro-quente, larguei o resto do lanche sobre a mesa, me calei de novo e fiquei esperando que o palhaço se levantasse e fosse desabafar ou contar vantagem em outra freguesia, mas como ele ria com deboche sabe-se lá por quê ou por quem, como se quisesse fechar seu dia de batalha com chave de ouro, humilhando o tipo mais excluído da escola, eu controlei milagrosamente minha fúria e num tom extremamente civilizado fiz minha última tentativa de me sobrepor:
_ Qual a diferença entre saber das aventuras do pai e saber das aventuras da mãe?
Dani fez uma expressão de quem tinha acabado de assistir um acidente, uma expressão que mais parecia a de um paciente ao saber do médico, que está condenado. Mas ao contrário do que eu esperava, ele não tentou me catequizar. Ele apenas fez um joguinho idiota que não me motivou a nada, mas pelo menos recuperou meu apetite:
_ Você não é desse mundo, né? Você não entendeu uma palavra do que eu disse, cara. Por isso que está sempre sozinho, você não entende nada da vida. Seu problema é que você é muito ingênuo. Cuidado, Estefânio, ingenuidade não leva a nada, só para o buraco. Você precisa conversar mais com as pessoas, dar uns beijos nas meninas. Você já ficou com alguém?
_ Não.
_ Você nunca ficou com nenhuma menina?!
A campainha da escola tocou avisando que o recreio tinha acabado. Dani queria dizer mais alguma coisa, sem dúvida, queria me enterrar vivo, mas estava cansado demais. Eu tive que engolir o que restava do lanche para voltar à aula.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Mães

Diário de Estefânio Marchezini

10 de agosto de 2005

Minha mãe acabou de sair. Disse que vai para São Paulo. Disse que vai a um encontro de católicos num estádio de futebol. Graziela, minha mãe, é uma maravilha! Eu não sei como chegar à sua essência, mas sei que ela é magnífica. Ela encontrou Deus há algum tempo, depois de muita procura. Ela o encontrou na Igreja a e acredita que Ele realmente estava lá o tempo todo aguardando por ela. Por isso ela trata a Igreja como algo sagrado e em seus ouvidos não chega qualquer coisa que possa comprometer essa cumplicidade. Minha mãe é uma guardiã... uma guardiã atenta e fiel como os milhões que existem por aí... cada um fiel à sua religião.
Mas minha mãe é, acima de tudo, uma criatura em busca da Verdade, da Justiça, do Bem e da Salvação... assim como a grande massa de gente que a acompanhará até São Paulo, no tal encontro; assim como a grande massa que segue todos os grandes princípios religiosos que regem o espírito desse tempo.
Minha mãe já está salva simplesmente porque já é massa. “a voz do povo é a voz de Deus”.
A última vez que nos falamos hoje foi pela vidraça: “Vou rezar por você, filho. Fique com Deus! Jesus te ama!”... Ele, eu não sei, mas Graziela certamente me ama...
As mães deveriam ser colocadas em algum lugar especial como os anjos e os santos são colocados. Ora! Elas são de outra dimensão!


11 de agosto de 2005

Admitimos, nós cristãos, que Jesus Cristo fora um agente mas é provável que os especialistas, entre eles cientistas, filósofos e homens e mulheres diferentes de mim e dos outros tolos do universo, percebam que na verdade Jesus Cristo fora mera consequência de uma trajetória da História. Ou seja, talvez ele tenha sido produto inevitável do curso das coisas ou do cruzamento entre a trajetória histórica dos judeus com a trajetória histórica dos romanos.
Eu sei lá...
Talvez seja isso mesmo: eu sou um tolo surdo às coisas que alguns estão berrando nos meus ouvidos há séculos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

os olhos de Chronos

Diário de Estefânio Marchezini

06 de agosto de 2005

Hoje de manhã, depois da aula de inglês, eu andei pelas ruas e pela primeira vez elas passaram por mim. Antes eu não as sentia, não sentia sua respiração. Mas agora sei que elas respiram um ar misto, cheio de partículas diversas que saem dos pulmões das milhares de pessoas que cruzaram comigo e que cruzam todos os dias quando ando pelas ruas.
Eu sei porque isso aconteceu. É que nos últimos dias tenho pensado no futuro. Ele é assombroso, não gosto de pensar nele, mas não posso evitar. Então, ao brincar com o tempo, me deparei com o presente. Isso foi uma novidade na minha vida. E por isso eu fiquei mais sensível.
Então andei apressado, sentindo todo o vigor da minha juventude na força das minhas pernas e pés; sentindo toda saúde dos meus órgãos. E como não conseguia parar de pensar no tempo, comecei a enlouquecer. Saí batendo a cabeça pelos muros e a cada choque, cada choro, cada soluço, surgia na minha mente uma certeza: esse fantasma me perseguirá para sempre. Enquanto eu não acreditar que existo por inteiro, ou seja, enquanto eu acreditar que sou uma anulação do humano, o fantasma me perseguirá.
E como se não bastasse falar baixinho para mim mesmo o que eu já sabia, ainda vieram cenas que ainda não aconteceram, revelações do meu futuro, e me mostraram, como num filme de cinema, que realmente eu não tinha saída.
Tudo isso aconteceu dentro de mim sem que ninguém pelas ruas desconfiasse de nada. Minha face, provavelmente deformada pelo sufoco, não despertou a atenção de ninguém. Esse segredo, essa intimidade, essa reserva de sentimentos e perturbações... são a maior comprovação de que tudo que me foi revelado será de fato, meu futuro.

08 de agosto de 2005

Cada vez que uma pessoa adulta me aborda, é como se a síntese da vida estivesse diante de mim. Porque isso sempre acontece quando esses adultos, gente vivida e experiente, se irritam com os jovens e suas bobagens, suas brincadeirinhas e, na tentativa de chacoalhar a juventude e acordá-la para a maravilha que é estar vivo, acabam agredindo até. É uma forma de educar, eles pensam, mas não estão preocupados com a educação em si, pois esta poderia ser profunda, e o que esses adultos querem é apenas espantar dos mais jovens a sua tendência apavorada ao desprendimento da seriedade, com essas bobagens, essas brincadeiras e palavras ditas em voz alta mas que quase nunca dizem nada. De certo modo eu tenho que ter compreensão mas não posso esperar que eles me compreendam. Ainda que meu comportamento seja qualificado como o de um estranho, minhas tentativas de sobreviver a esse julgamento acabam às vezes me equiparando à maioria dos jovens da minha faixa etária e talvez por ser só um disfarce, minha verdadeira face acaba me denunciando e aí aqueles que não toleram risinhos, barulho, zoeira e palavras vazias, se lançam sobre mim com o objetivo de me expurgar. E eu, em silêncio, escuto os discursos enquanto saboreio o lamento amargo tanto pela vergonha de ser escolhido por minha fraqueza, quanto por entender que o que está em jogo não é a minha educação profunda mas apenas a educação temporária que me faça ser agradável a quem está perto de mim.
É diante dessas coisas, que até parecem exagero, sei lá... é diante disso que me sinto amedrontado. Pois vejo nesses alertas o problema da maturidade; mesmo que eles venham de alguém que viveu muito bem, que soube aproveitar cada minuto da juventude e que realizou todos os sonhos... Esses alertas mostram que viver intensamente e bem não é suficiente para despertar alguém para o profundo. Esse corpo, essa mente, esse espírito, e também toda essa coisa desconhecida que está sempre presente, tudo junto é apenas uma síntese. O resto é só desejo... o desejo inesgotável de parar o tempo enquanto não se enxerga luz... o desejo de dominar o tempo para a espera do último e triunfante discurso!

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

para onde explodir?

Diário de Estefânio Marchezini

05 de agosto de 2005

Outro dia cheguei atrasado à primeira aula. Era aula de português. Valéria, a professora recém-contratada, vem fazendo um malabarismo sem fim para se adaptar ao novo trabalho. Acho que ela é recém-formada, pois se fosse mais experiente não deixaria tanta insegurança à vista.
No momento em que eu cheguei, Valéria devia estar metida em mais uma luta contra a própria fragilidade pois ela elevava a voz tentando conter a farra dos alunos, coisa normal quando eles percebem a insegurança do professor. Ao perceber minha presença e diante do meu pedido de desculpa pelo atraso, Valéria aproveitou para me envolver na sua luta e me expôs para a classe como se assim quisesse nos fragmentar. Avisou à turma:
_ Já que não chegamos a uma conclusão sobre o tema da redação, esse colega de vocês vai decidir.
E se dirigindo a mim, pediu:
_ Dê um tema para as redações dos seus colegas, por favor.
Surpreendido com o pedido e irritado com a atitude de Valéria em me envolver num assunto sem me consultar antes, apanhei o giz e sem dizer nada escrevi com letras garrafais o tema no quadro: “O que mais me irrita neste momento”. É claro que a classe foi à loucura num coro de gargalhadas que puderam ser ouvidas pelo pavilhão todo.
Valéria acatou minha decisão, provavelmente contrariada, pelo simples fato de eu ter provocado mais algazarra do que já havia, ainda que não estivesse claro se os risos vieram por causa do tema ou por causa da maneira irritada como eu o escrevi no quadro.
Mais tarde, já com os ânimos voltados ao normal, refleti sobre o que aconteceu. Me senti um idiota, não tanto pela ação impulsiva mas pelo desperdício e injustiça. Pressenti que houve um desperdício da ocasião em que eu, ao invés de ajudar Valéria a se fortalecer perante a classe, acabei fortalecendo um laço meu com a classe, que aliás é ilusório pois não há ninguém naquela sala que poderia entender minhas atitudes, assim como eu não consigo entender nenhuma de suas atitudes. E também cometi uma injustiça na medida em que diminuí Valéria quando ela, apesar de agir mais por desespero do que por consciência, me engrandeceu ao me promover a árbitro da situação.
Eis uma das coisas que mais me irritam a todo instante: não conseguir delinear onde começa e onde termina meu campo gravitacional. E eu nem sequer usei a oportunidade da redação para escrever sobre isso...

sábado, 31 de julho de 2010

Um diário de ambições!

Diário de Estefânio Marchezini

30 de julho de 2005

Onde não há pensamento artístico e a busca por uma expressão que dê conta das percepções, sentimentos e flagrantes da alma... onde não há essa perspectiva de criação, só pode haver a perspectiva estranha de que algum acidente fatal está prestes a acontecer, tamanho o desequilíbrio e a desordem que cercam tudo, do real à imaginação.


04 de agosto de 2005

A vontade de expressar por meio da arte é, definitivamente, a recusa do ar convencional que oxigena os cérebros.
Essa recusa tem origem na suspeita de tudo quanto pode parecer agradável e suficiente. Essa recusa é a constatação de que está havendo uma perversão mas não se sabe quem é o pervertido. A vontade de criar é a recusa do simples, do breve, do opaco, sobretudo do opaco. É a busca, paradoxalmente pouco esperançosa, da verdade, ou o consolo de acreditar que haja pelo menos uma verdade absoluta: a do interior de quem busca.

terça-feira, 27 de julho de 2010

como escrever

27 de julho de 2005

Desafio para mim: o atual.
Capto algumas características do mundo atual. Quero retratá-las de modo fiel ao modo como elas me vêm. Tenho que diagnosticar suas origens e buscar a lucidez, coerência e inteligência ao tentar fazer as análises.
Tais características precisam ser tratadas assim para que eu possa identificar onde e porque elas pertencem a este tempo e não a outro. A atualidade é pois um objeto vivo porque é nela que estou.
A atualidade é propensa ao meu juízo sobre a realidade. Então, que características, que dados, que fenômenos podem ser tratados sob esse princípio? O que é importante para mim e considerado como traço da atualidade, deve compartilhar a opinião de muitos, pessoas que também procuram essas respostas à luz da ciência e da filosofia.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O romance terá sua publicação via blog interrompido aqui.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

o discreto tumulto

Diário de Estefânio Marchezini

29 de julho de 2005

Algumas vezes me animo em discussões em que alguém cita meu futuro. Me animo porque a simples pronúncia da palavra futuro me lança nele pelo menos na mente de quem a pronuncia. Imagino o que se projeta para mim e sobretudo sobre mim. Gostaria de conhecer o amanhã só para ter certeza de que o agora é real.
Entre meus esforços para me envolver com o mundo surgem experiências estranhas que me soam extravagantes demais. Penso que se o crescimento é tão confuso assim, como vou saber o momento certo assumir a maturidade?
Meus gestos são tão precisos, meu silêncio é tão cômodo. É impossível que alguém perceba a loucura dos meus dias, a sensibilidade dos meus nervos. Ninguém imagina o que para mim é mais que óbvio: que a qualquer segundo posso desaparecer como a imagem de uma televisão ao ser desligada. Meus dedos vivem com as extremidades protegidas por esparadrapos e quando alguém pergunta por eles, eu invento que é uma forma de me evitar roer as unhas. Todos acreditam nessa história, nem imaginam que os esparadrapos foram colocados para estancar o sangue dos pequenos cortes que eu provoquei voluntariamente só para ver meu sangue escorrer como se, com ele, também estivesse escorrendo alguma impureza da qual eu quisesse me livrar.
Juízos, possibilidades, pretensões, dúvidas, certezas e até amores surgem em forma de penumbras apenas, a todo instante, quando eu menos espero e sem que eu tenha tempo e cabeça para captá-los. Brincam com a minha vulnerabilidade ao entusiasmo, recolhem meus impulsos de qualquer jeito, fazem deles uma festa onde eu, convertido em anfitrião, tento acreditar que posso domá-los. Quando dou por mim, estou sonolento, embriagado pelo êxtase da festa; mas não quero dormir; quero seguir pela noite dançando com todos os fantasmas presentes, quero sentir a intensidade de cada um, quero abraçá-los. Todos, no entanto, se mostram fugidios como o galho da lucidez em que tento me agarrar a cada final de festa.
Ainda há quem se atreva a falar em seriedade quando se trata de vida!

segunda-feira, 26 de abril de 2010

deslocamento

Diário de Estefânio Marchezini

25 de julho de 2005

A ebulição de perguntas que nem chegam a ser formuladas direito consomem minha capacidade de demonstrar bom humor. Assim, me torno um ser rude, envelhecido, indisposto. Isso talvez explique porque meus colegas se afastam de mim. Se por um lado colaboro para a paz dos adultos que me cercam, ao me calar diante da tal ebulição, por outro lado eu afugento os outros jovens pois entre eles é mais difícil disfarçar os medos que teimam em me atormentar. Essa dificuldade consiste justamente no fato de eu esperar que entre nós, jovens da mesma faixa de idade, poderíamos compartilhar esse tumulto; o problema é que até para isso, ao que parece, foram estabelecidos alguns regulamentos e eu não consigo localizá-los... ou eles não querem me localizar. De modo que fico suspenso: para os adultos, estou entre os jovens; para os jovens, estou perdido.

sábado, 10 de abril de 2010

uma pausa na história de Estefânio, para eu falar de outros romances que estão em andamento

A POLÍTICA SEGUNDO DANI SCARPINI
O grande conflito que move o enredo é o abalo de Dani Scarpini depois do fim de uma relação amorosa breve mas intensa. Enquanto tenta se desvencilhar de tal sofrimento, Dani vive um cotidiano sem grandes emoções: ganha a vida trabalhando numa imobiliária e à noite, depois do expediente, visita um bar onde faz amizades e procura alguém que substitua o amor perdido.
Em casa, Dani vive, não numa família nuclear, mas num clã. A propriedade dos Scarpini abriga tanto a casa onde Dani mora com a mãe como outras três casas de irmãos de seu falecido pai. Essa família, descendente de italianos (como muitas famílias de Bonfim Paulista), é formada por pessoas excêntricas e um tanto quanto exóticas, herdeiros de empreendimentos decadentes. Essas pessoas são fortemente marcadas por traços de tradições diversas: ruralista, benzedeira, circense; além de incluir parentes “positivistas”, aqueles que lutam para livrar as novas gerações dos entraves do passado (tradições e excentricidades que comprometeram a prosperidade da família) e que procuram orientar esses novos Scarpini no rumo de uma vida mais racional, sóbria e empreendedora.
Enquanto assiste à luta familiar entre loucos e positivistas, Dani acompanha uma trajetória eleitoral onde sua mãe e outros parentes, por serem populares no distrito de Bonfim Paulista, são convidados a participar da campanha de um partido nas eleições municipais de 2008. Dani condena tal envolvimento porque percebe que a mãe está sendo usada. Mas não consegue se fazer escutar e nem diminuir o entusiasmo dentro do clã em relação às promessas dos candidatos e do ambiente político eleitoral.
Enquanto isso, no ambiente noturno do bar, os namoros, as amizades, a sedução e a boemia, são para Dani ingredientes de outra luta, uma luta discreta onde estão envolvidos valores, discursos, maneiras, costumes, domínios diversos, preconceitos, estética, competições, obsessões, desilusões.
Toda essa variedade de lutas vai construindo a concepção de poder de Dani Scarpini.

PUNHO DE AÇO
Téo mora de favor numa casa paroquial. Por ela passam vários hóspedes que Téo recebe sem problemas.
Mas um dia a casa recebe a figura de um homem, um enfermeiro, que transformará a vida de Téo num inferno. Esse homem, que a princípio é recebido como uma graça, com o tempo passa a exercer sobre Téo uma estranha força: sem nenhum propósito muito claro para Téo, o enfermeiro passa assediá-lo de maneira implacável. Sempre que tem oportunidade e sob diversas formas faz referências à condição de Téo como beneficiário da igreja, como que zombando de sua natureza passiva, dependente e até certo ponto, anulada.

Estefânio assume sua irremediável desconfiança

Diário de Estefânio Marchezini

23 de julho de 2005

Percebo que há alguns valores recentes que ganharam terreno expressivo nos últimos anos, ao menos naqueles em que comecei a observar o mundo com mais cuidado e desconfiança, atento inclusive para elementos que eu não reconhecia antes desse período. E nesse ponto, encontramos uma contradição em relação à visão que se cultua hoje sobre a minha geração: o individualismo, um dos produtos mais bem acabados que a era da Internet criou, é também um risco para a cultura da patrulha invisível pró-bem-estar-e-segurança. Pois é justamente aí que encontro alguns dos meus pontos de fuga quando não suporto mais fugir na representação. No entanto, obcecado por essa contradição, acabo fazendo do que seria um alívio, mais um motivo para a desconfiança e a hesitação.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A geração de Estefânio, segundo ele mesmo

Diário de Estefânio Marchezini

22 de julho de 2005

Talvez esteja por vir o dia em que essa visão, esse olhar da sociedade sobre nós, mude. Mas considerando até as minhas observações mais otimistas, que não são muitas, não acredito que isso venha logo. Talvez seja necessário aguardar até que essa nossa geração assuma o comando do mundo para ver no que vai dar e aí ela mesma, já adulta, julgue a educação recebida. Imagino que tenha acontecido assim nas últimas gerações quando a juventude fez algumas conquistas. Alguns elementos cultivados pela geração de meus pais e avós já não se mostram mais tão adequados à minha. Eles mesmos enquanto jovens cuidaram do cultivo e agora amaldiçoam os consumidores; mantêm os filhos e netos superprotegidos contra as tentações às quais muitos deles não resistiram.
Assim é. Pelo menos é nesses aspectos da minha sociedade que eu volto a atenção. Mas não para condená-la ou exigir coisa alguma, mesmo porque eu não sou o senhor dos meus olhos ou ainda não tenho maturidade para responder definitivamente por este olhar. Ciente disso, tento seguir meus colegas na sua alegre tranquilidade e esperar que eu aprenda a dar tempo ao tempo até que as próprias circunstâncias façam o mundo pesar sobre meus ombros de acordo com o expediente para a qual há toda uma programação bem elaborada. Mas... eu não consigo fechar os olhos para a realidade da fortaleza que constróem constantemente a cada passo que damos. Minha curiosidade vai além do que estou permitido a ver; quero saber as razões de muralhas tão altas, quero entender o que faz meus pais, professores, médicos, inspetores de alunos, guardas de trânsito tão obsessivamente preocupados conosco. E é por isso que comparo gerações anteriores com a minha. Não para julgar ninguém mas para me precaver com relação à geração dos meus futuros filhos.
Se a questão fosse só a segurança, a integridade física, a saúde, não haveria motivo para tanto desgaste. Eu percebo que é mais do que isso. Sob o pretexto da proteção, a sociedade construiu um baluarte formado de produtos de toda espécie, estereótipos e todo um arsenal de símbolos que permitem a ela detectar o mais discreto desvio do que se estabeleceu como ideal. De certa forma esses instrumentos tornam mais fácil a vigilância que, apesar de necessária, é difícil quando há tanto o que se fazer hoje em dia para se sustentar essa própria realidade. A propósito, o que chamo aqui de realidade, certamente ganhará, algum dia, algumas páginas deste diário pois ela é um dos assuntos mais atraentes para mentes perturbadas como a minha.

sexta-feira, 12 de março de 2010

SOB OS OLHOS DE CHRONOS

Diário de Estefãnio Marchezini

21 de julho de 2005

O que os outros me mostram como um recurso para a felicidade que eles não tiveram quando tinham a minha idade, para mim tem um caráter totalmente diferente do que o que tem para eles. Então aceito, ainda que sem perceber que estou aceitando de bom grado e só depois de já ter consumido e digerido todas as palavras, todas as regras, todas as leis, todos os procedimentos e tudo o que foi construído com todo carinho e espírito de providência para mim... só depois de aceitar tudo isso é que me dou conta da minha covardia quando negligenciei minha própria comunicação e acabei eu mesmo sendo engolido pelos patrocinadores da minha geração. É assim que me sinto e me flagro quase que diariamente: engolido.
Eu e todos os outros iguais a mim somos todos iguais. A única coisa que nos difere – e isso mantenho em absoluto segredo – é a minha neurose. Ninguém suportaria um adolescente neurótico. Não nos dias de hoje. Ninguém suportaria um adolescente que teme os olhos de Chronos e sua sentença como se já fosse velho ou estivesse à beira da morte. Assim, uma das máscaras que eu mais uso é a que me deixa bem parecido com os outros meninos e meninas da minha geração. Ela me protege de eventuais embaraços que são na verdade desaconselháveis e inoportunos, já que não fariam por si só grande diferença no quadro geral. Quanto a mim, aprendi a conviver com isso. Ao longo dos anos tenho exercitado a paciência e às vezes, quando ela falta, eu busco inspiração no padeiro; olho fixamente para toda aquela massa que a padaria transforma em pães e bolos e me imagino como sendo eu uma pequena porção de um dos ingredientes usados nas massas. Imagino a satisfação dos clientes quando devoram pães e bolos e a sua doce certeza de que, enquanto tudo funcionar bem – a economia, a profissão de padeiro, o mercado de trigo, leite e ovos – toda a ordem será, pelo menos aparentemente, preservada. Então tudo fica mais fácil. Eu volto a ser a criatura dócil que todos esperam, meus nervos são poupados e a digestão da sociedade segue sem ânsias de vômito.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Estefânio descobre o desamparo

Diário de Estefânio Marchezini

19 de julho de 2005

Não me atreverei a vasculhar ponto por ponto como a complexidade começou a mostrar seus dentes nos meus pesadelos que se tornaram frequentes desde que atingi uma certa idade, mas há um ou outro fato que ficou gravado no meu cérebro como se ainda fosse possível detectar clara e objetivamente, o ponto central desse ou daquele processo. Entre esses fatos posso apontar um que está bem guardado na minha memória como um importante registro num dossiê capaz de servir como dado fundamental numa audiência de um Alto Tribunal. Não seria exagero apontá-lo como uma possível origem de um conflito interior que me arrancaria definitivamente das fraldas e me lançaria num jogo abrupto de coisas e significados, de ações e consequências, de correlações entre fatos e pensamentos, entre desejos e conquistas ou fracassos, entre sentimentos e razões...
O fato: meu irmão, um ser amado por mim, a uma certa distância de mim. Eu, um ser que ama, mas jamais se deu conta desse amor, apenas brinca com o irmão que está a certa distância. De repente, um impulso: eu – o ser que ama – lança um brinquedo na direção do meu irmão – o ser amado – e esse brinquedo chega com certa força a seu destino. O destinatário não tem tempo de interceptar o objeto que voa em sua direção. E o objeto acerta sua cabeça. Imediatamente brota, no lugar da pancada, uma fonte de sangue tão grande que leva a mãe de ambos – o lançador desastrado e a vítima – a gritar apavorada por socorro. Pessoas da vizinhança aparecem em segundos, ansiosas por explicação. Não há tempo para se questionar o que aconteceu, é preciso providência. Todo mundo ordena para todo mundo que se chame uma ambulância, um médico, por favor. O menino está desmaiado ou talvez esteja morrendo. Pavor. Desespero. Emergência... Enfim, uma ambulância, pessoas que socorrem, esperança de retorno à ordem.
Os momentos de espera por resposta é outro fato – o mais significativo. Da resposta dos médicos nascerá o caos ou renascerá a paz. Minha mente está em frangalhos, mais do que as instituições em meio à crise provocada por golpes de estado. Estou numa fase da vida em que se começa a assumir responsabilidades, num momento em que os pais começam a mudar o discurso; percebem que os antigos golpes já não funcionam e que é preciso renovar os métodos. Estou, portanto, numa fase em que a vulnerabilidade é regra. Estou com os pés na beirada do precipício e sinto vertigem ao olhar a imensidão lá em baixo. Quero sair do perigo e do risco de queda mas meus pés não se descolam do chão. Só há uma saída: uma negociação.
Pois bem, meu superior, eu ofereço o sacrifício dos meus dias vindouros em troca da vida e da saúde do meu irmão. Não significa que entregarei minha própria vida, mas que a colocarei à sua disposição. Faça de mim o que bem entender. Me faça sofrer. Me faça amargar por entre a impotência, a dor, a humilhação, a exploração, a fome, a sede, o frio, todo tipo de carência... me faça seu escravo.
Tão logo elevo meus pensamentos a um possível senhor do destino, comunicando minha proposta, o médico sai do corredor e entra na sala de espera. Minha mãe se levanta rapidamente; eu ainda estou anestesiado pela minha viagem espiritual momentânea. Mesmo sentado ouço a notícia do médico: “Não foi nada não, mãe, é coisa boba, o moleque tá pronto pra outra”.
Claro que tudo não passou de um acaso, mas para mim naquela ocasião, naquela fase da vida em que eu ainda acreditava que tinha controle sobre o universo, pareceu realmente um sinal de que minha proposta tinha sido acolhida.
Meu futuro era desconhecido mas não foi preciso esperar muito para perceber que o trato que eu fizera com o tal senhor do destino era inútil. Essa certeza quem me mostrou não foi nenhum anjo mas minha própria condição humana. Já nos primeiros instantes percebi que todos aquelas desgraças que eu havia chamado para mim em troca de um favor – impotência, dor, humilhação, exploração, fome, sede, frio e todo tipo de carência – se mostraram tão naturais que quando eu as sentia na pele nem me impressionava tanto. Na verdade, nada havia mudado, apenas minha percepção das coisas. E então percebi que a minha atitude ingênua de propor a negociação não era mais do que a manifestação de um desprezo absurdo: ou seja, naquela antiga percepção, eu desprezava a vida, eu desprezava as dores por achar que para mim elas nunca passariam de palavras, talvez porque eu tenha sido uma criança razoavelmente feliz que, se sofreu alguma carência, os pais fizeram de tudo para amenizá-la a ponto de eu quase não a perceber.
Desse modo, com todos os embaraços devidamente resolvidos, eu mesmo comecei a cuidar de mim e, à maneira dos meus bondosos pais, tentei amenizar as dores procurando aqui e ali as soluções para o meu bem estar na medida em que fui sentindo a necessidade e de acordo com o horizonte ético em que fui educado. Enfim, descobri naturalmente que não era necessário tanto drama para se fugir de uma punição rigorosa e que a consciência pode encontrar outras formas de se regenerar, além de se meter em negociações que não levam a nada a não ser descobrir que não há motivos para ela. Mas essa história não vem ao caso, o que importa aqui é a percepção da minha real personalidade até aquele instante: minha crença estava iludida pela esperança da existência de um interlocutor que correspondesse à minha dialética. Eis o meu erro. Não que eu descobrisse que de fato não haja ninguém nos ouvindo em nossas orações desesperadas ou propostas de negócio, não... a questão é que, naturalmente, vamos nos descobrindo solitários quanto ao discurso... Sim, nosso discurso é egocêntrico, humanamente desproporcional ao que esperamos do interlocutor que está do outro lado, caso ele esteja lá...
Enfim, o acerto de contas foi sendo abandonado aos poucos enquanto surgia outro alívio que despontava no horizonte da minha existência. No entanto, esse alívio trazia no seu âmago a certeza de uma solidão que me fazia mais responsável e mais determinante do que nunca jamais imaginei ser. Essa certeza me cobrava uma emergência moderna de leitura do mundo e eu, no início, me vi desesperado novamente, incapaz de corresponder com ela da mesma forma que meu interlocutor era incapaz de se corresponder comigo.
Fiquei desamparado diante de mim mesmo. Pois eu havia me deixado levar pela vaidade de acreditar que eu seria ouvido. Ao me flagrar solitário, vi comprometida minha introdução no futuro. Afinal, desde muito cedo eu havia lhe dado um tom, uma cor, uma forma; havia enfim um projeto que não estava de acordo com a minha realidade e sim com o meu sonho. Como punição eu me neguei a sonhar de novo.
Mas justamente por não ter mais certezas nem acreditar que tenho controle sobre o universo, o sonho me invade e eu, ao percebê-lo, me defronto de novo com a minha natureza pueril. A inconsequência do sonho me aflige mas a frieza, o cálculo, o planejamento do domínio me irritam por não me fornecerem uma resposta satisfatória nem um estado de estabilidade próxima da paz, condição que acredito ser fundamental para eu compreender a mim mesmo.
Eis portanto uma possível chance do meu conflito bem como a sua dinâmica e o seu processo de tentativa de resolução. Inclui-se aqui, acima de tudo, a averiguação cada vez mais patente da neurose, cujo fluxo de consciência varre todas as possibilidades da sua construção, sua ação e sua resistência à cura.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Estefânio tenta entender o que é o crescimento

Diário de Estefânio Marchezini

17 de julho de 2005

Me lembro que no início havia uma simplicidade e os sentidos podiam trabalhar à vontade porque nada me assustava, não a ponto de eu correr sem parar em busca de um esconderijo como se eu fosse vítima de uma perseguição implacável. Não. Aquela simplicidade, ainda que já anunciasse discretamente uma tendência do meu espírito a um olhar labiríntico das coisas, me mantinha sempre estável, ilusoriamente dono do meu território, saudável, presente, ou melhor, antecipado aos fatos. Tudo que acontecia à minha volta eu tentava submeter a uma observação que eu acreditava legítima e acima de qualquer possibilidade de desengano. Ora, a inocência nos garante esse direito; pelo menos na infância somos propensos a vanglória do juízo porque tudo é simples. Estamos, ou devemos estar, quando crianças, totalmente alheios à complexidade. Mas quando alguma força patológica interior aguarda ansiosa pelo crepúsculo da infância em que a criança enfim dorme para sempre e no lugar dela desperta a criatura meio-criança-meio-adulto... aí a simplicidade nos dá seu adeus definitivo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

continuando...

Diário de Estefânio Marchezini

16 de julho de 2005

Não luto, porém, não posso ignorar as características desse não-lutar.
É difícil dizer que tipo de relação existe entre as características desse não-lutar com a manifestação da minha neurose. Não sei precisar sua relação com as possíveis causas da patologia, nem saber em que medida elas acentuam seus efeitos ou sintomas. Consideremos que tais características tenham sido determinantes para o nascimento da neurose. O que eu deveria fazer? Claro, eu deveria me revelar como sou e como me sinto, deveria portanto chocar, mas o choque também teria consequências dramáticas que talvez eu não tivesse condições de controlar uma vez que essa revelação seria fruto do meu desespero e portanto sujeita à ausência de cálculo. Consideremos então que elas tenham sido comprometidas ou mesmo determinadas pelos sintomas. Bem, então eu deveria apenas procurar um médico, contar a ele toda a verdade: que tenho renunciado a uma série de questionamentos pelo bem de uma ordem que é necessária mas que não me é adequada, não é própria do meu temperamento e com isso os prejuízos estão cada vez maiores na minha mente, por mais que eu me convença de que muitos estão ganhando ou que estão sendo poupados de muitos transtornos, sofrimentos e perdas de sono por minha causa. Depois então me submeteria ao tratamento indicado pelo médico, tomaria todos os remédios direitinho e estaria certo de que pelo menos aliviei o peso da minha consciência em relação ao meu próprio bem estar.
Portanto, pela lógica seria mais interessante considerar que as características do não-lutar tenham mais a ver com os sintomas da minha neurose. O problema é que não estou bem certo se devo encarar as coisas dessa forma e a lógica já faz tempo que deixou de ser um critério seguro devido, justamente, ao fato dela ter se esgotado durante o período em que eu lutava para me preservar diante da perspectiva de neurose. Enfim, ela não me socorreu quando eu ainda tinha capacidade de manter a calma e pensar devagar; agora, portanto, não vejo sequer a menor possibilidade de tentar, pois fico irritado toda vez que tento e essa irritação cresce à medida que aumenta minha percepção sobre a própria irritação e sobre a minha ridícula tentativa de não me irritar. Ou seja, toda vez que faço alguma coisa sob pressão acima da minha intuição, acabo dentro dessa espiral, a espiral da solidão. E a ação se anula instantaneamente.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Sobre o livro

O livro DIÁRIO DE UM NEURÓTICO foi escrito entre os anos de 2005 e 2006 e rebatizado com o título principal CRONOS algum tempo depois. Embora com o enredo concluído, deve receber revisões.

Trata-se de um romance em forma de diário. O protagonista que escreve o diário é um jovem que acaba de entrar para a maioridade e descobre-se incapaz de corresponder às exigências da vida adulta. Para lidar com esse medo apavorante o personagem Estefânio tenta, por um lado, assumir sua própria fragilidade e por outro, entender qual a parcela de responsabilidade da sociedade e da educação. Enfim, esse é o conflito que move a narrativa.

O mito de Chronos serve como uma orientação para Estefânio compreender sua geração. Ele acredita que sua geração seja sistematicamente engolida pelas anteriores.

O INÍCIO

Diário de Estefânio Marchezini

Ano de 2005


12 de julho

A todo instante encontro pessoas tentando me convencer de que meu mundo está em ordem. Minha indiferença é tratada como um privilégio. Acreditam realmente que sou um felizardo ou, no mínimo, que estou numa fase feliz da vida pois minha idade é pouca, tenho tudo a meu favor, tenho tempo para crescer com tranquilidade, tenho uma tranquilidade que é típica da minha idade ou, pelo menos, necessária, o que me coloca numa posição confortável em relação a todos que assim me julgam: fazem o máximo para que eu me sinta de fato tranquilo. E eu correspondo.
Talvez hoje, quando completo dezoito anos de idade, eu deveria aproveitar para fazer alguma coisa nova, usar o aniversário como pretexto e declarar algumas diretrizes para minha nova fase. Mas se eu fizesse isto, mesmo que me esforçasse para tornar essa atitude natural, quem me levaria a sério? Pois talvez eu esteja errando quando acabo, enfim, me adaptando a tudo isso, escondendo minha verdadeira face sob a máscara da indiferença. Mas é que em parte minha intenção, ainda que inconsciente, é representar toda essa ordem que parece obsessivamente necessária aos que tentam me moldar a ela. Em parte também é porque o empenho para com esse estado de coisas é tão gigantesco que não posso resistir mesmo que encontrasse um bom motivo, alguma coisa da qual dependesse minha vida, por exemplo.