POTENCIALIZAÇÕES:
O CASO FABIANE
Em abril deste ano, circulou pelos
jornais virtuais a notícia de que um jovem casal havia sido atacado na cidade
de Guarujá. Os dois, vindos do ABC paulista, estariam tentando pichar uma rocha
perto de uma praia. Estariam pichando “ABC”
quando foram abordados por um grupo de pessoas que estava na praia.
Segundo os noticiários on-line o grupo castigou os dois jovens, pichando-os de
preto. As fotos expostas na internet mostram um rapaz e uma moça pintados
totalmente de preto, inclusive os rostos.
A agressão a esse casal me lembrou
outros episódios modestamente mostrados ultimamente nos sites de notícias dando
conta de justiçamentos (pessoas agindo por conta própria para punir alguém
acusado ou flagrado em algum delito). Mas
nenhuma dessas histórias se compara ao que ao que aconteceu com Fabiane Maria
de Jesus, também na cidade de Guarujá. Os sites de notícias e outros canais
midiáticos contaram que na tarde de sábado, dia 03, uma dona de casa fora
confundida com um retrato falado que circulava pelo Facebook, numa página
chamada Guarujá Alerta. O retrato falado seria de uma criminosa que raptava
crianças para usá-las em rituais de magia negra. Fabiane, a dona de casa, teria
sido confundida com o retrato. Moradores
do bairro Morrinhos, de Guarujá, atacaram, arrastaram, agrediram, lincharam
Fabiane. Ainda segundo os noticiários, a polícia teve que fazer um cordão de
isolamento para que uma ambulância conseguisse socorrer a dona de casa. Fabiane
foi levada para o hospital mas morreu na manhã de segunda-feira, dia 05.
Durante toda esta semana os
noticiários estiveram em busca dos fatos que levaram à tragédia, mesmo porque
as imagens do linchamento foram expostas na Internet, o que causou algo que se
pode chamar de uma angústia coletiva. Uma angústia coletiva provocada pela
tentativa de compreender o que parece inexplicável... E vieram as
investigações, depoimentos na polícia, análise das cenas mostradas na rede. Com
a repercussão do caso, chegou-se à origem do tal retrato falado: fora feito
pela polícia do Rio de Janeiro em 2012, por conta de tentativa de rapto. Uma
mulher teria tentado arrancar um bebê dos braços da mãe que saía de um posto de
saúde. Um homem que passava conseguiu recuperar o bebê mas a mulher, a suposta
sequestradora, conseguiu fugir. A mãe foi à polícia e descreveu a mulher. O retrato
falado, porém, não ficou só nos arquivos da polícia do Rio; perambulou pela rede
e chegou a várias cidades, inclusive de outros estados. Ao que parece, ao longo
desses dois anos de “compartilhamentos” e propagação do retrato no mundo
virtual, o rosto da mulher desconhecida fora ganhando versões diferentes, mas
sempre associadas ao perigo, ao crime. Na cidade de Guarujá a página do
Facebook chamada “Guarujá Alerta” publicou o retrato informando que se tratava
de uma mulher que roubava crianças para usá-las em ritual de magia negra. Ainda
segundo os sites de notícias, os administradores da página teriam permitido a
divulgação da imagem sem pesquisar sua origem e a veracidade da denúncia,
embora alertassem que pudesse se tratar de um boato. E era um boato. Aliás, no
período de propagação da imagem, o retrato ganhou o status do que se costuma chamar
de lenda urbana, a expressão de um sentimento ou um sentido que, devido a uma
série de fatores, se potencializa, se agiganta numa comunidade, ainda que no
silêncio, na discrição, na mudez... Somado à potencialização tradicional da “lenda
urbana” temos a potencialização tecnológica proporcionada pelos recursos da
comunicação virtual, que agilizam o tráfego de imagens, sons e palavras digitais
por espaços virtuais.
A história pessoal de Fabiane cruza
com essas potencializações no momento em que ela passa por uma crise na saúde. Segundo
o marido da dona de casa, ela era diagnosticada com transtorno bipolar e por
esses dias vinha sofrendo uma crise. Passava horas fora de casa, criando
pretextos para visitar amigos e parentes, andando de bicicleta pelas ruas,
falando às vezes frases desconexas... agindo, enfim, sob o efeito de um
distúrbio mental, que nem sempre é compreensível por quem não está
familiarizado com a pessoa portadora da doença. As últimas informações
levantadas pelos noticiários dão conta de que o momento chave que desencadeou
no linchamento de Fabiane ocorreu quando ela, ao sair de um mercado, ofereceu
uma fruta a uma criança. Pessoas que estavam por perto associaram o gesto da
mulher ao retrato falado e ao alerta que se via na página “Guarujá Alerta”. Confundiram
as coisas, misturaram tudo num sentimento só, tomaram a dona de casa como a
mulher do retrato. Para piorar tudo - triste coincidência! - na manhã daquele
dia Fabiane tinha tingido os cabelos de uma cor diferente dos seus, por isso
não foi reconhecida imediatamente por ninguém no local, que pudesse esclarecer
a situação naquele momento tenso de acusação. Em meio ao clima de dúvida, por
um lado, e de revolta, por outro, venceu a acusação e o sentimento de vingança,
o sentimento de ódio cego. Fabiane foi brutalmente agredida por causa de uma
confusão que envolvia uma opinião coletiva. Uma opinião que, por ser coletiva,
deveria ser “verdadeira” e principalmente de autoria anônima. Sob o anonimato
do gesto, comungado, de destruir a suposta bruxa, os participantes do
linchamento não se incomodaram com as câmeras digitais que fotografaram e
filmaram tudo... Agiram movidos pelo ódio, sem perceber que poucos dias depois
seriam alvo desse mesmo ódio, só que mais potencializado, levado à esfera do
nacional e do internacional. Tomaram consciência, enfim, de que supliciaram e
mataram uma pessoa inocente...
Ironias do mundo digital!...