terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Escritores pela liberdade
28 de fevereiro de 2012 | 3h 07

JOAQUIM MARIA BOTELHO - O Estado de S.Paulo
Os tempos mudam, mudam as urgências. Qual a bandeira do escritor brasileiro nos tempos atuais, em que os inimigos estão ocultos sob nomenclaturas cheias de vaguidão, como "mercado", "urgências sociais" e outras? Mesmo sem vaca e sem bandeira, ó Neruda, e muitas vezes sem editora, o escritor continua sendo o sustentáculo de qualquer política cultural consistente, em qualquer país. Ele reflete, rememora, inaugura, antecipa, testemunha, sugere, incentiva. E debate. Foi o que fizemos, 600 de nós, durante o Congresso Brasileiro de Escritores de 2011, que foi realizado em Ribeirão Preto.


Debatendo durante quatro dias, nós nos dispusemos a cobrar dos poderes públicos a proteção, a defesa e o apoio à produção literária e a incentivar as famílias a intervirem no processo da formação de leitores. O manifesto que resultou do nosso congresso já foi encaminhado aos ministros Aloizio Mercadante, da Educação, e Ana de Hollanda, da Cultura. E, neste espaço com que o jornal O Estado de S. Paulo nos privilegia, queremos ampliar a divulgação das nossas decisões.

Nós, escritores, protestamos contra modalidades de censura ainda em vigor, como as restrições judiciais que impedem a circulação de biografias e outras pesquisas, a pretexto de defender sucessores ou pesquisados, porque representa evidente cerceamento à liberdade criadora do escritor e também limita o direito dos leitores de conhecerem mais opiniões acerca de determinada figura pública ou de certos acontecimentos.

Restrições dessa natureza resultam em prejuízo para a pluralidade de opiniões e levam à superficialidade do pensamento. Em suma, empobrecem a própria educação. Também por isso, entendemos ser prioridade a defesa intransigente da qualidade da educação no Brasil, esperando do Estado os investimentos necessários à qualificação e ao aprimoramento dos professores e à manutenção de escolas e equipamentos; em especial, que seja resgatado o ensino da literatura nas escolas, com atenção ao conteúdo e ao valor, tanto pedagógico quanto artístico, das obras adotadas para leitura e exame, com ênfase para a produção nacional, com critério, mas sem censura.

Sustentamos, como premissa, que o governo brasileiro implante e defenda política cultural nacional, equilibrada, justa, democrática e aberta, da qual o Estado participe como facilitador, e não como mentor, exigindo a defesa, o incentivo e a proteção de toda criação artística, pautada pelo respeito ao direito autoral, à liberdade de expressão, à busca de ampla divulgação e publicidade, em atendimento aos preceitos do desenvolvimento cultural de um país: educação, cidadania, democracia, igualdade, liberdade, diversidade, direitos humanos e preservação do acervo e do patrimônio cultural, estético, artístico e ecológico do País.

Não se chegará a isso sem a imprescindível ampliação dos programas em curso, especialmente de órgãos do Ministério da Cultura, para estimular a leitura e promover a difusão da literatura brasileira, assim enfrentando o dramático descompasso, em nosso país, de índices de leitura de livros e, correlatamente, do alarmante analfabetismo funcional.

Requeremos, igualmente, por parte dos órgãos públicos, consistência e regularidade nos programas de difusão da literatura brasileira no exterior, apoiando traduções de obras, mostras e apresentações de autores, a exemplo do que é feito, rotineiramente, pelos governos de outros países.

Esperamos esforços equivalentes das administrações estaduais e municipais, para que desenvolvam políticas culturais em consonância com esse esforço; especialmente, ao manterem e equiparem bibliotecas públicas e programas de promoção da literatura e incentivo à leitura, e pela boa divulgação da produção nacional em seus equipamentos culturais e meios de comunicação.

Repudiamos frontalmente programas de difusão de livros e incentivo à leitura, especialmente na área educacional, que exijam a renúncia a direitos autorais e de edição. Declaramos inadmissível qualquer equiparação da tradução literária ou qualquer escrita criativa à prestação de serviços, obliterando ou suprimindo direitos autorais. Exigimos transparência nas prestações de contas a autores por parte de editores e, por isso, propomos, como tópico da lei de direitos autorais ora em exame, a inserção de informe da tiragem pela gráfica nas edições em maior escala; e, naquelas em impressão digital ou nos livros por encomenda, que as editoras numerem cada exemplar. E, ainda, que em livros eletrônicos ou quaisquer edições no meio digital seja garantido ao autor o conhecimento a qualquer tempo da quantidade de exemplares adquiridos por esse meio; e, também, que seja assegurada, nas compras de grandes quantidades de livros por órgãos públicos, a comprovação pelo editor de que o titular de direitos autorais foi informado da compra.

Lutaremos pelo fim dos privilégios no fomento à produção artística; pela reestruturação do Fundo Nacional de Cultura, de modo que este receba recursos originados do Imposto de Renda devido pelas empresas, a serem destinados a projetos aprovados por um conselho de representantes da sociedade civil que analisarão projetos a serem financiados por leis de incentivos, assim retirando das empresas patrocinadoras o poder decisório sobre a destinação final de tais recursos.

Aproveitamos para confessar as nossas próprias faltas e prometer os nossos melhores esforços para que a literatura brasileira cumpra o seu papel social, que é o de registrar nossa identidade, perscrutar nossa alma, brasileira e universal, e dar voz ao sentimento do mundo. E assim contribuir para a História. Talvez não como queremos, mas como podemos.

*PRESIDENTE DA UNIÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES (UBE)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A FORMA INFINITA


na foto, "Estandarte", de Arthur Bispo do Rosário
Imaginemos o olhar da abelha operária e coloquemos nossos olhos nos olhos dela. Essa nova abelha, dotada de visão humana, terá que unir à força do instinto a sede da razão. Com esse acúmulo ela se cansará das milhares de flores e suas cores, cheiros e formas. A busca pelo néctar em certo momento irá se tornar uma tarefa árdua, contaminada por uma angústia que só pode ser humana. Pois aos olhos humanos não bastará identificar a flor; nessa viagem, nesse voo majestoso, o olhar humano exercitará também a contemplação. Assim, na tarefa que garante a preservação da sua espécie, essa abelha – humanizada – terá que fechar os olhos para a estética, para não se esgotar.
Deixemos pois a abelha em paz! Nada de olhos humanos sobre seu objeto-mundo.
Pensemos então em outro tipo de comunhão do homem com a natureza. Uma comunhão que considere apenas a contemplação. Aqui também há alguma razão para o olhar humano recorrer a essas formas e organizações. Natureza e estética são assim cúmplices perfeitas para o nosso deleite. Mas quando uma racionalidade industrial e uma conveniência cotidiana imperam, as formas e organizações são subjugadas e entregues ao desequilíbrio. Nesse caso, não há como não enfrentar o prejuízo para aquele humano que precisa contemplar. Dominar a natureza com o fim único da exploração é desarticular aquela comunhão. Onde só existe exploração desmedida a rosa não consegue encantar, não servirá de nada além do passageiro adorno para uma solenidade.
Nas artes somos convidados a exercitar o olhar para além da conveniência cotidiana. Elas vêm fazer parte da nossa comunhão com a natureza. Elas possuem uma função. Na Arte Contemporânea, onde o rigor da criação ultrapassa os limites da imagem real e natural, o observador-contemplador encontrará uma forma visceral lá onde viu a promessa de refúgio. Na provocação estabelecida por essa forma reside todo o conflito que expressa as possibilidades de um espírito atual. O que é esse espírito? Como o instinto se preserva nele? Já não basta copiar o que os olhos veem. Faz-se necessário então elaborar um acordo com o refúgio, compreender a intenção de verdade e a experiência que se escondem atrás daquela forma. A subjetividade, que determinou todas as opções do artista, vem aos olhos do observador provocar, se instalar como parte de um processo histórico e converter a interpretação em aliança com o artista. Agora é a obra que se assume como possibilidade de voo. Já não há mundo que possa ser negado pelo olho. Se para a abelha só interessa a flor, para o observador de arte haverá o desafio do infinito. E a forma exigirá a transgressão quanto maior for a resistência ao debate sobre o que envolve a criação e sempre que houver o risco de uma indiferença para com a natureza humana.
O estranhamento, que tantas vezes convence o observador a se afastar de uma obra de arte contemporânea, não pode ser banalizado. Esse estranhamento pode ser o reflexo de um estado, seja ele depreciativo, emancipador, estagnado, que ainda não está no todo assimilado. Estranhamos algo sempre que ele implica num confronto inevitável com nosso próprio interior. A Arte Contemporânea, antes de tudo, favorece a memória naquilo em que estimula a “comparação” com outros períodos. É também a convocação do suspense, a interrupção do tempo, a mobilização vaga pelo espaço, o resgate do instinto. A Arte Contemporânea exige que creditemos ao inconsciente a propriedade da memória, exige a abertura para o sentimento mais recôndito e para a magia do sonho. O estranhamento portanto deve ser o primeiro passo, a porta de entrada para o desafio do infinito. Deve reverter a situação de incômodo e resolver o impasse. Ficar imóvel diante de uma obra requer o reconhecimento de uma dignidade que hoje significa, inclusive, furtar-se de um cotidiano que não consegue oferecer mais do que o transitório. Por isso mesmo muitas vezes uma obra se configura no efêmero, de pouca duração e descomprometida com tudo que um dia inspirou o eterno. O registro contudo é necessário para que se preserve a lembrança da obra que um dia existiu. Pois o registro do observador no momento da exposição pode não durar mais do que o tempo de existência da obra. Por outro lado, essa mesma efemeridade pode estimular um registro que reflita sobre as circunstâncias dessa escolha, dessa ação, desse comportamento, enfim. Ver, observar, abrir-se à forma artística passa a ser então um movimento quase de tensão.
Tensão, estranhamento, deleite... A relação com a obra se cumpre finalmente. Formaliza-se enquanto busca, enquanto esperança na sensibilidade e não só no sensorial. Extraímos da forma o néctar, o substancial para seguir pelos dias.