quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Mães

Diário de Estefânio Marchezini

10 de agosto de 2005

Minha mãe acabou de sair. Disse que vai para São Paulo. Disse que vai a um encontro de católicos num estádio de futebol. Graziela, minha mãe, é uma maravilha! Eu não sei como chegar à sua essência, mas sei que ela é magnífica. Ela encontrou Deus há algum tempo, depois de muita procura. Ela o encontrou na Igreja a e acredita que Ele realmente estava lá o tempo todo aguardando por ela. Por isso ela trata a Igreja como algo sagrado e em seus ouvidos não chega qualquer coisa que possa comprometer essa cumplicidade. Minha mãe é uma guardiã... uma guardiã atenta e fiel como os milhões que existem por aí... cada um fiel à sua religião.
Mas minha mãe é, acima de tudo, uma criatura em busca da Verdade, da Justiça, do Bem e da Salvação... assim como a grande massa de gente que a acompanhará até São Paulo, no tal encontro; assim como a grande massa que segue todos os grandes princípios religiosos que regem o espírito desse tempo.
Minha mãe já está salva simplesmente porque já é massa. “a voz do povo é a voz de Deus”.
A última vez que nos falamos hoje foi pela vidraça: “Vou rezar por você, filho. Fique com Deus! Jesus te ama!”... Ele, eu não sei, mas Graziela certamente me ama...
As mães deveriam ser colocadas em algum lugar especial como os anjos e os santos são colocados. Ora! Elas são de outra dimensão!


11 de agosto de 2005

Admitimos, nós cristãos, que Jesus Cristo fora um agente mas é provável que os especialistas, entre eles cientistas, filósofos e homens e mulheres diferentes de mim e dos outros tolos do universo, percebam que na verdade Jesus Cristo fora mera consequência de uma trajetória da História. Ou seja, talvez ele tenha sido produto inevitável do curso das coisas ou do cruzamento entre a trajetória histórica dos judeus com a trajetória histórica dos romanos.
Eu sei lá...
Talvez seja isso mesmo: eu sou um tolo surdo às coisas que alguns estão berrando nos meus ouvidos há séculos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

os olhos de Chronos

Diário de Estefânio Marchezini

06 de agosto de 2005

Hoje de manhã, depois da aula de inglês, eu andei pelas ruas e pela primeira vez elas passaram por mim. Antes eu não as sentia, não sentia sua respiração. Mas agora sei que elas respiram um ar misto, cheio de partículas diversas que saem dos pulmões das milhares de pessoas que cruzaram comigo e que cruzam todos os dias quando ando pelas ruas.
Eu sei porque isso aconteceu. É que nos últimos dias tenho pensado no futuro. Ele é assombroso, não gosto de pensar nele, mas não posso evitar. Então, ao brincar com o tempo, me deparei com o presente. Isso foi uma novidade na minha vida. E por isso eu fiquei mais sensível.
Então andei apressado, sentindo todo o vigor da minha juventude na força das minhas pernas e pés; sentindo toda saúde dos meus órgãos. E como não conseguia parar de pensar no tempo, comecei a enlouquecer. Saí batendo a cabeça pelos muros e a cada choque, cada choro, cada soluço, surgia na minha mente uma certeza: esse fantasma me perseguirá para sempre. Enquanto eu não acreditar que existo por inteiro, ou seja, enquanto eu acreditar que sou uma anulação do humano, o fantasma me perseguirá.
E como se não bastasse falar baixinho para mim mesmo o que eu já sabia, ainda vieram cenas que ainda não aconteceram, revelações do meu futuro, e me mostraram, como num filme de cinema, que realmente eu não tinha saída.
Tudo isso aconteceu dentro de mim sem que ninguém pelas ruas desconfiasse de nada. Minha face, provavelmente deformada pelo sufoco, não despertou a atenção de ninguém. Esse segredo, essa intimidade, essa reserva de sentimentos e perturbações... são a maior comprovação de que tudo que me foi revelado será de fato, meu futuro.

08 de agosto de 2005

Cada vez que uma pessoa adulta me aborda, é como se a síntese da vida estivesse diante de mim. Porque isso sempre acontece quando esses adultos, gente vivida e experiente, se irritam com os jovens e suas bobagens, suas brincadeirinhas e, na tentativa de chacoalhar a juventude e acordá-la para a maravilha que é estar vivo, acabam agredindo até. É uma forma de educar, eles pensam, mas não estão preocupados com a educação em si, pois esta poderia ser profunda, e o que esses adultos querem é apenas espantar dos mais jovens a sua tendência apavorada ao desprendimento da seriedade, com essas bobagens, essas brincadeiras e palavras ditas em voz alta mas que quase nunca dizem nada. De certo modo eu tenho que ter compreensão mas não posso esperar que eles me compreendam. Ainda que meu comportamento seja qualificado como o de um estranho, minhas tentativas de sobreviver a esse julgamento acabam às vezes me equiparando à maioria dos jovens da minha faixa etária e talvez por ser só um disfarce, minha verdadeira face acaba me denunciando e aí aqueles que não toleram risinhos, barulho, zoeira e palavras vazias, se lançam sobre mim com o objetivo de me expurgar. E eu, em silêncio, escuto os discursos enquanto saboreio o lamento amargo tanto pela vergonha de ser escolhido por minha fraqueza, quanto por entender que o que está em jogo não é a minha educação profunda mas apenas a educação temporária que me faça ser agradável a quem está perto de mim.
É diante dessas coisas, que até parecem exagero, sei lá... é diante disso que me sinto amedrontado. Pois vejo nesses alertas o problema da maturidade; mesmo que eles venham de alguém que viveu muito bem, que soube aproveitar cada minuto da juventude e que realizou todos os sonhos... Esses alertas mostram que viver intensamente e bem não é suficiente para despertar alguém para o profundo. Esse corpo, essa mente, esse espírito, e também toda essa coisa desconhecida que está sempre presente, tudo junto é apenas uma síntese. O resto é só desejo... o desejo inesgotável de parar o tempo enquanto não se enxerga luz... o desejo de dominar o tempo para a espera do último e triunfante discurso!

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

para onde explodir?

Diário de Estefânio Marchezini

05 de agosto de 2005

Outro dia cheguei atrasado à primeira aula. Era aula de português. Valéria, a professora recém-contratada, vem fazendo um malabarismo sem fim para se adaptar ao novo trabalho. Acho que ela é recém-formada, pois se fosse mais experiente não deixaria tanta insegurança à vista.
No momento em que eu cheguei, Valéria devia estar metida em mais uma luta contra a própria fragilidade pois ela elevava a voz tentando conter a farra dos alunos, coisa normal quando eles percebem a insegurança do professor. Ao perceber minha presença e diante do meu pedido de desculpa pelo atraso, Valéria aproveitou para me envolver na sua luta e me expôs para a classe como se assim quisesse nos fragmentar. Avisou à turma:
_ Já que não chegamos a uma conclusão sobre o tema da redação, esse colega de vocês vai decidir.
E se dirigindo a mim, pediu:
_ Dê um tema para as redações dos seus colegas, por favor.
Surpreendido com o pedido e irritado com a atitude de Valéria em me envolver num assunto sem me consultar antes, apanhei o giz e sem dizer nada escrevi com letras garrafais o tema no quadro: “O que mais me irrita neste momento”. É claro que a classe foi à loucura num coro de gargalhadas que puderam ser ouvidas pelo pavilhão todo.
Valéria acatou minha decisão, provavelmente contrariada, pelo simples fato de eu ter provocado mais algazarra do que já havia, ainda que não estivesse claro se os risos vieram por causa do tema ou por causa da maneira irritada como eu o escrevi no quadro.
Mais tarde, já com os ânimos voltados ao normal, refleti sobre o que aconteceu. Me senti um idiota, não tanto pela ação impulsiva mas pelo desperdício e injustiça. Pressenti que houve um desperdício da ocasião em que eu, ao invés de ajudar Valéria a se fortalecer perante a classe, acabei fortalecendo um laço meu com a classe, que aliás é ilusório pois não há ninguém naquela sala que poderia entender minhas atitudes, assim como eu não consigo entender nenhuma de suas atitudes. E também cometi uma injustiça na medida em que diminuí Valéria quando ela, apesar de agir mais por desespero do que por consciência, me engrandeceu ao me promover a árbitro da situação.
Eis uma das coisas que mais me irritam a todo instante: não conseguir delinear onde começa e onde termina meu campo gravitacional. E eu nem sequer usei a oportunidade da redação para escrever sobre isso...