segunda-feira, 12 de setembro de 2011

escrever em terceira pessoa

Dentro das muitas experiências que já fiz na escrita, nenhuma jamais se colocou como um desafio tão grande quanto escrever romances em terceira pessoa. E é engraçado dizer isso porque minha primeira tentativa séria de fazer um romance - "Poênia" - foi em terceira pessoa. Mas como havia a consciência de que aquilo era só um exercício, não me preocupei tanto. Com o tempo fui notando essa dificuldade. Eu achava interessante que no conto essa dificuldade não aparecia; eu narrava com tranquilidade no conto, mas no romance sempre vinha aquela urgência de jogar a responsabilidade da narrativa no ombro de um personagem. Assim aconteceu com "Exército Particular", "Cárcere Privado", "Cronos", "Ato Penitencial".
Certa vez, acho que antes de "Cronos" e do "Ato", eu me meti num projeto de romance que parecia simples, a tal ponto que eu "ousei" escrevê-lo em terceira pessoa. Algo deu errado; não sei se foi a temática, o universo do livro, o grande número de personagens, os núcleos de tensão que os envolviam... ou se foi tudo isso somado a minha falta de preparo para escrever romances em terceira pessoa... O fato é que cada vez que carregava o enredo até lá pelas 100 páginas, eu entrava num profundo estado de insatisfação e voltava lá atrás, querendo mudar tudo ou começar tudo do zero. Esse processo se repetiu várias vezes. Quando me dei conta de que o livro caminhava mas não respirava... quando me dei conta de que o livro tinha um enredo mas não uma pulsação... decidi parar de vez.
Parar de vez quer dizer que não parei só com aquele livro; parei com tudo. Parei com outros projetos, parei de ler, parei até de pensar... O primeiro bloqueio criativo a gente nunca esquece!
Por quase três meses vivi como um androide, sem alma, sem sentimento nenhum, indiferente a tudo e a todos. Mas aí aconteceu uma coisa estranha (que eu conto em outra oportunidade) e eu saí do bloqueio. Compreendi que a culpa pela pane na minha mente se dera por vários fatores ligados ao livro; o bendito romance que me derrubou tinha muitos elementos que eu não conseguia dominar. Na verdade não era um grande romance, nada mega fantástico, não. Era coisa boba, coisas do cotidiano... por isso mesmo eu estranhei essa barreira toda!... De qualquer forma, ao sair do bloqueio, tratei de tomar mais cuidado comigo mesma: decidi voltar a me apoiar no ombro do personagem. Escrevi em poucos meses a primeira versão do "Ato Penitencial" (onde o protagonista é o narrador).
Bom, depois de tantos apuros, eu acho que amadureci um pouco: percebi que para ganhar segurança nos romances, como eu tinha nos contos, escrevendo em terceira pessoa, eu precisava de uma marca, um jeito meu de escrever, ou seja eu precisava criar uma personagem fixa (eu) ou arrancar de dentro da cidadã Regina, uma Regina narradora. Então me embrenhei por outro livro-exercício (como tinha sido "Poênia"). Foram páginas e páginas contando a história de uma jovem, Apolônia, criada pelo pai para ser uma mulher absolutamente livre, como um homem... O enredo parece bom? Talvez fosse? Mas o que me interessava era só a linguagem, o jeito de escrever, a sintaxe... sei lá, o estilo...
Sim, eu devo muito a Apolônia. Acho que consegui!
Então em novembro de 2009 eu dei por terminado mais um romance: "A Performance"... corajosamente escrito em terceira pessoa!
Atualmente, enquanto me preparo para lançar o "Ato" (que faz parte daquela minha fase covarde), ando trabalhando em outro romance "A Política Segundo Dani Scarpini", também em terceira pessoa.
Termino deixando um trechinho de Dani Scarpini:

"O tempo só é devidamente equacionado por Dani quando a eficácia do trabalho eletrônico no escritório da construtora distrai um pouco o tormento da solidão, a agonia atemporal que desafia o poder de compreensão da razão. Uma vez que geramos todas essas facilidades tecnológicas de produção, é preciso reconhecer que elas estão em acordo com o pensamento, ainda que esse pensamento permaneça refém de algum sistema educacional e reprodutivo determinado sem a consideração do essencial humano. Fugir da agonia é tudo que interessa ao essencial humano de Dani desde que conhecera a rejeição de Vit. Por isso a tecnologia no trabalho é avaliada como saudável, pois uma vez que os números se engrenam com tanta rapidez às contas da empresa, uma vez que Dani conquista diariamente a confiança dos patrões para sua capacidade de trabalho eficiente, uma vez enfim que a dinâmica das tarefas não lhe permite parar para chorar o amor perdido, seu equilíbrio está garantido... Estando a vida material preservada pela estabilidade no emprego, o coração e suas fraquezas ficam sob responsabilidade total do corpo que os comporta. Dani sente-se responsável por sua própria felicidade. Para livrar-se da dor daquela paixão maldita é preciso primeiro seguir as ordens do dia e ocultar de todos o seu flagelo sentimental, pois um drama íntimo torna-se maior se for assistido por curiosos. Assim pensa Dani Scarpini.
O tempo não é mais do que tempo de cumprir as determinações dos tribunais do mercado. Há um discurso que preza pelo crescimento econômico. Dani aprendera a analisar os discursos dos jornais e de todas as mídias. Não está clara a origem desse dom, mas o fato é que Dani sente necessidade de investigar o discurso. Jamais aceita os noticiários como eles lhe vêm. Nunca. Discursos são entidades sempre suspeitas. Elas dizem “A” quando querem transmitir “B”. E o pior é que nem elas, as entidades do discurso, conseguem perceber o que estão dizendo: não podem saber se estão dizendo A ou B. Somente o político profissional do século vinte e um é capaz de ler a real intenção do discurso. É verdade que esse profissional forjará algumas vezes a interpretação, mas até aí reinará seu profissionalismo: uma vez que esse herói interpreta o discurso e percebe ali uma controvérsia em relação a sua essência política (seu princípio ou interesse)... haverá ali um malicioso arranjo para que a interpretação soe como a leitura mais coerente daquele discurso.
Mas no caso de Dani não há razão para camuflagem porque sua leitura da realidade por meio das mídias não afetará o pensamento de outras pessoas. Dani não faz uso dos recursos da comunicação virtual como Blog, Site, Orkut ou outros recursos capazes de transmitir pelo ar sua visão das coisas. Acha que tudo isso é coisa chata. Assim, Dani não vê motivo para se ocupar com metodologias de divulgação de suas ideias que constrói quase que espontaneamente. Dani portanto só trabalha para si. Toda sua malícia para leitura e interpretação dos discursos só está a seu serviço. Não há razão para acreditar-se pertencente ao mundo dos deuses. Dani tem plena consciência de que seu dom não lhe concederá nada de especial nesse mundo, não lhe concederá melhor salário, não lhe concederá status, não lhe concederá condições de conquistar Vit... mesmo porque Vit talvez tenha percebido seus dotes e mesmo assim não se impressionara a ponto de conservar a relação. De que adianta tanto poder, tanto dom, quando não se pode ganhar o amor do ser amado?"

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