quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Talvez, um amigo

Diário de Estefânio Marchezini

12 de agosto de 2005

O Dani é um cara que poderia ser meu amigo se ele quisesse. Porque eu, por mim, seria amigo dele. Estamos na mesma sala desde a oitava série mas nunca trocamos mais do três ou quatro palavras porque nossas diferenças de personalidade são gritantes. Eu sou o cara caladão, bonzinho, que faz todas as lições de casa; Dani está sempre nos centros das rodas de garotos e garotas. É o cara que sempre fala mais alto, nunca está sozinho, é sempre o líder de qualquer grupo de pesquisa ou do time de basquete, futebol, vôlei... Eu sempre tive uma impressão interessante sobre ele... pelo menos até hoje. Sempre o achei um cara legal, sintonizado, atento às novidades, bem resolvido. Enfim, sempre o invejei quando sofria e sofro ainda com meu deslocamento, meu isolamento involuntário.
Mas hoje Dani e eu nos falamos por um bom tempo e pela primeira vez e infelizmente meu conceito sobre ele, depois desse contato, mudou radicalmente. Nos encontramos na cantina da escola, na hora do recreio. Ele se sentou na minha mesa porque não viu nenhuma outra vazia. Acabamos conversando. Ele começou dizendo que estava angustiado e foi logo despejando o motivo de sua angústia como se eu fosse seu amigo íntimo. Eu pensei: “Caramba, o Dani angustiado?!” Sempre vi esse cara como um cara poderoso, do tipo... “não tenho problemas”. Mas, para minha surpresa, o Dani me confidenciou coisas que, se fosse comigo, eu não teria coragem de dividir com um desconhecido, o que me dá uma boa sensação de normalidade porque tenho certeza que a maioria das pessoas pensaria como eu.
Não sei porque Dani fez isso, quero dizer, porque ele se abriu comigo, sendo que nós nunca fomos íntimos. Talvez faça parte do temperamento dele agir assim, falar de coisas de casa, da família, com o primeiro que aparece; ou então a exclusividade não esteja nele mas em mim; talvez Dani tenha procurado alguém fechado em si, dotado apenas de ouvidos e não de língua, e viu em mim o ouvinte perfeito.
Ao se apresentar, Dani me surpreendeu dizendo que já tinha ouvido falar de mim:
_ Todo mundo diz que você nunca se enturma. Por quê?
Eu, constrangido até os ossos, respondi:
_ Deve ser porque sou muito calado.
Confesso que procurei mas não achei resposta melhor. Ainda bem que ele pareceu não ter prestado atenção no que eu disse e perguntou:
_ A gente pode conversar um pouco?
Eu respondi que sim. E foi aí que Dani começou a falar. Disse que tinha acabado de fazer uma coisa inusitada. Eu fiquei calado, atento mas sem demonstrar curiosidade, embora estivesse curioso. Ele foi em frente:
_Acabei de ter uma conversa séria com o suposto e muito provável amante de minha mãe... Não foi um encontro fácil... não foi fácil enfrentar aquele cara... Sabe o que significa encarar o amante da própria mãe, cara?
Eu fiquei quieto, esperando aparecer algo mais inusitado, pois na verdade eu aguardava uma história diferente, mais misteriosa, mais escandalosa ou mais dramática. Dani fez uma pausa como se me dissesse “o que você acha disso?”. Como ele não desembuchava eu disse:
_Então você enfrentou o cara?
_Enfrentei. Eu não me intimidei, disse tudo numa tacada só, não dei chance nem dele pensar. Ele deve estar tonto até agora. Eu deixei bem claro para esse sujeitinho que ele não está lidando com idiotas, entendeu? O filho da puta deve estar, nesse momento, terminando o romance com a minha mãe. Pois eu tenho certeza que ele não vai ter cara de pau de continuar essa aventura depois de tudo que eu disse.
Antes que aquele babaca continuasse se vangloriando eu quis tirar uma dúvida:
_ Mas a sua mãe estava correspondendo?
E ele:
_ Que diferença faz? Ela é uma mulher casada, cara, tem um filho, eu; tem casa pra cuidar. Ela é minha mãe, caralho!
Eu não conseguia acreditar no que ouvia. O cara que eu achava ser tão maluco não passava de um imbecil. Ele não me perguntou mas eu quis expressar minha opinião para que ele se afastasse de mim o quanto antes.
_ Eu não me meteria numa história que não é minha... Se fosse comigo, eu deixava minha mãe se virar... É assunto dela... Ela é que tem que resolver...
Foi a vez do Dani ficar perplexo:
_ Espera aí, cara, você não está entendendo. Quando o pai da gente dá umas pulada de cerca, a gente até entende, mas eu estou falando da mãe, entendeu? Da minha mãe. Ela bem que tentou usar essa história de que meu pai é infiel, que ele usa o casamento por conveniência, que ele também tem uma amante, mas você não acha que a gente tem que aguentar essa balela, não é?
E eu:
_ Eu não acho nada, não conheço seus pais, não conheço os amantes deles.
Aí então, perdi o apetite. Eu, que estava na metade de um cachorro-quente, larguei o resto do lanche sobre a mesa, me calei de novo e fiquei esperando que o palhaço se levantasse e fosse desabafar ou contar vantagem em outra freguesia, mas como ele ria com deboche sabe-se lá por quê ou por quem, como se quisesse fechar seu dia de batalha com chave de ouro, humilhando o tipo mais excluído da escola, eu controlei milagrosamente minha fúria e num tom extremamente civilizado fiz minha última tentativa de me sobrepor:
_ Qual a diferença entre saber das aventuras do pai e saber das aventuras da mãe?
Dani fez uma expressão de quem tinha acabado de assistir um acidente, uma expressão que mais parecia a de um paciente ao saber do médico, que está condenado. Mas ao contrário do que eu esperava, ele não tentou me catequizar. Ele apenas fez um joguinho idiota que não me motivou a nada, mas pelo menos recuperou meu apetite:
_ Você não é desse mundo, né? Você não entendeu uma palavra do que eu disse, cara. Por isso que está sempre sozinho, você não entende nada da vida. Seu problema é que você é muito ingênuo. Cuidado, Estefânio, ingenuidade não leva a nada, só para o buraco. Você precisa conversar mais com as pessoas, dar uns beijos nas meninas. Você já ficou com alguém?
_ Não.
_ Você nunca ficou com nenhuma menina?!
A campainha da escola tocou avisando que o recreio tinha acabado. Dani queria dizer mais alguma coisa, sem dúvida, queria me enterrar vivo, mas estava cansado demais. Eu tive que engolir o que restava do lanche para voltar à aula.

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