quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

OLHO DE VIDRO - parte IX

Mais um capítulo de OLHO DE VIDRO, de Márcia Tiburi. Ela o intitulou de “Estado de Sítio ou Diante da Lei da Opacidade”.
Este capítulo é, talvez, aquele em que Márcia mais se aproxima de uma contextualização jurídica ou legal da Televisão. O termo “estado de exceção” (que faz parte do subtítulo do livro: “A televisão e o estado de exceção da imagem”), quer atribuir à imagem televisiva um papel análogo à fronteira entre política e direito. Esse termo trata do ponto de vista jurídico/político, trata da suspensão do vivente enquanto sujeito. Na verdade está-se fazendo uma comparação da Televisão com a ordem militar “O telespectador precisa ser pensado a partir da condição biopolítica que ocupa com seu corpo dócil diante do aparelho que cativa sua percepção” (pg 156). Márcia conduz a tese no sentido de que Televisão “decreta um estado de percepção a que convencionamos chamar de realidade”.  Aí está seu estatuto de coisa instaurada, admitida como ordem ou norma, enfim, como realidade: o poder místico da imagem.
Contudo, a autora admite que, apesar da interferência dessa potência da imagem sobre o sujeito, o olhar ainda mantém seus atributos que, em conexão à força do objeto, se constrói numa dialética onde “a televisão é o totalmente visto que jamais é realmente visto porque ela impossibilita que se veja” (pg 162). Nesse ponto Márcia nos conta que Giorgio Agamben foi quem percebeu a semelhança da lei no conto “Diante da Lei”, de Franz Kafka, com a função da Televisão, pois tal como no conto, a televisão não exige nada, não impõe nada, está simplesmente aberta; cabe ao telespectador (tal qual o camponês do conto) entrar e viver as consequências.  
Encerro este trecho fazendo uma observação sobre a analogia feita por Márcia neste capítulo. No conto “Diante da Lei”, de Kafka, todo o sabor pungente da narrativa está concentrado no diálogo entre o sentinela e o camponês, no qual o primeiro nega acesso ao segundo, que ao chegar diante da porta da lei pede autorização para entrar. A negação do sentinela se estende sem que se ofereça uma justificativa plausível para tal. A reação do camponês – fiel ao estilo kafkiano – é aguardar pacientemente por dias, meses, anos, apenas intervindo na autoridade do sentinela no sentido de conquistar sua licença para passar. Bom, seguindo a proposta de Márcia Tiburi, ou seja, colocando no lugar da Lei a tela da Televisão, me parece que a função do sentinela torna-se uma espécie de provocação: o telespectador (no papel do passivo camponês), ao pedir licença para entrar, encontra a negação do acesso como uma provocação ou estímulo do seu “desejo de realidade”. Tal desejo não se cumpre porque esbarra numa autoridade (o sentinela) mas se preserva e até se acentua, fazendo com que o telespectador/camponês se mantenha firme na espera. Mas... e essa espera... o que é?  Que construção na vivência pode ocorrer durante essa espera, o período de questionamento sobre a autoridade do obstáculo e a ansiedade pelo acesso? Em Televisão acho que esse processo não comporta uma visão tão simples como proposto por Márcia. A autoridade que bloqueia a passagem ou a adia para “mais tarde”, fazendo com que o solicitante permaneça diante da porta, me parece mais um agente do mundo externo do que propriamente do mundo interno (lei/televisão). Ele oferece a manutenção desse “lado de fora” na medida em que preserva o camponês/telespectador perto de si, numa posição submissa porém isento das consequências do que acontece no lado de dentro, ainda que – como se revela no final do conto – aquela abertura fosse destinada ao solicitante. Contra a realidade almejada pelo solicitante (o lado de dentro), o sentinela oferece uma outra realidade, pautada na obediência da espera pela licença. No contexto da lei, porém, podemos aceitar que o solicitante queira um direito, uma justiça, uma legitimação, um reconhecimento... No contexto da televisão, o solicitante deseja tudo isso mas como prótese. No primeiro caso a autoridade nunca poderá oferecer uma prótese da verdade, porque a lei está somente ali, por trás daquela porta; mas no caso da televisão, o solicitante poderá dispensar a prótese se a realidade do lado de fora se tornar admissível. 

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