quinta-feira, 3 de maio de 2012

O PERSONAGEM


Quando nasce um livro, as personagens, ou pelo menos seus protagonistas, já estão velhos. Assim eu percebo meus personagens. Porque eles nascem bem antes da história. Eles vagam por muito tempo no plano infinito antes de serem confrontados com o real.
                O que é o Real para um personagem fictício?... O real lhe chega como uma outra ficção, pois só assim essas duas entidades, personagem fictícia e realidade, conseguem se fundir.  Essa realidade disfarçada de ficção não teme qualquer ameaça. Ela é vigorosa porque é só ideia; não possui ação, não contempla reações, valor, juízo. Ela é uma foto do real mas não possui o estatuto da realidade.       Assim, o personagem fictício consegue se inserir nela e articular com suas forças... energia que vem do Real (consciência, valor, juízo, ação). 
                 Ao se encontrar num plano de possibilidade real, do limite, não mais do infinito, o personagem entra no processo de construção, de fato. Meus personagens são mais vivos e coerentes quanto mais viva e forte é a experiência real que os abraçou e os transportou para o enredo. Meus personagens fatalmente resistirão à escrita enquanto não houver uma harmonia nesse encontro, nessa junção.  Deve haver um mínimo de harmonia.
                Paradoxalmente, o personagem muitas vezes nascerá da própria negação do real e isto tornará sua construção ainda mais terrível. Contudo, ele buscará uma via de acesso enquanto vagar pelo campo da ideia. Ali ele mostrará várias faces mas estas raramente revelarão nitidamente sua essência. Mesmo antes de ganhar páginas, o personagem detém uma essência e ela só terá chance de se revelar com fidelidade quando se consumar a ficção/criação.  Nesse estágio, a ideia terá se materializado, a sustentação daquele coração fictício terá enfim uma chancela: a Forma.
                Palavra e Realidade são portanto as frentes de batalha em que o personagem de ficção travará sua luta por concretização, ora se entregando, ora resistindo. Ele se nutrirá da seiva do conhecimento da realidade. No ato da escrita, quando o real é disperso, nebuloso, maquiado, o personagem tende a recuar.  O conhecimento aqui significa a realidade vivenciada como confronto, mesmo no cotidiano. Ainda que esse confronto se dilua no tempo de vivência – o que amortece o poder de impacto da experiência vital – deve se abrir os olhos para o arrebatamento. Pois é através dele que o personagem fugirá da invenção para se tornar ficção.  

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