segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A FORMA INFINITA


na foto, "Estandarte", de Arthur Bispo do Rosário
Imaginemos o olhar da abelha operária e coloquemos nossos olhos nos olhos dela. Essa nova abelha, dotada de visão humana, terá que unir à força do instinto a sede da razão. Com esse acúmulo ela se cansará das milhares de flores e suas cores, cheiros e formas. A busca pelo néctar em certo momento irá se tornar uma tarefa árdua, contaminada por uma angústia que só pode ser humana. Pois aos olhos humanos não bastará identificar a flor; nessa viagem, nesse voo majestoso, o olhar humano exercitará também a contemplação. Assim, na tarefa que garante a preservação da sua espécie, essa abelha – humanizada – terá que fechar os olhos para a estética, para não se esgotar.
Deixemos pois a abelha em paz! Nada de olhos humanos sobre seu objeto-mundo.
Pensemos então em outro tipo de comunhão do homem com a natureza. Uma comunhão que considere apenas a contemplação. Aqui também há alguma razão para o olhar humano recorrer a essas formas e organizações. Natureza e estética são assim cúmplices perfeitas para o nosso deleite. Mas quando uma racionalidade industrial e uma conveniência cotidiana imperam, as formas e organizações são subjugadas e entregues ao desequilíbrio. Nesse caso, não há como não enfrentar o prejuízo para aquele humano que precisa contemplar. Dominar a natureza com o fim único da exploração é desarticular aquela comunhão. Onde só existe exploração desmedida a rosa não consegue encantar, não servirá de nada além do passageiro adorno para uma solenidade.
Nas artes somos convidados a exercitar o olhar para além da conveniência cotidiana. Elas vêm fazer parte da nossa comunhão com a natureza. Elas possuem uma função. Na Arte Contemporânea, onde o rigor da criação ultrapassa os limites da imagem real e natural, o observador-contemplador encontrará uma forma visceral lá onde viu a promessa de refúgio. Na provocação estabelecida por essa forma reside todo o conflito que expressa as possibilidades de um espírito atual. O que é esse espírito? Como o instinto se preserva nele? Já não basta copiar o que os olhos veem. Faz-se necessário então elaborar um acordo com o refúgio, compreender a intenção de verdade e a experiência que se escondem atrás daquela forma. A subjetividade, que determinou todas as opções do artista, vem aos olhos do observador provocar, se instalar como parte de um processo histórico e converter a interpretação em aliança com o artista. Agora é a obra que se assume como possibilidade de voo. Já não há mundo que possa ser negado pelo olho. Se para a abelha só interessa a flor, para o observador de arte haverá o desafio do infinito. E a forma exigirá a transgressão quanto maior for a resistência ao debate sobre o que envolve a criação e sempre que houver o risco de uma indiferença para com a natureza humana.
O estranhamento, que tantas vezes convence o observador a se afastar de uma obra de arte contemporânea, não pode ser banalizado. Esse estranhamento pode ser o reflexo de um estado, seja ele depreciativo, emancipador, estagnado, que ainda não está no todo assimilado. Estranhamos algo sempre que ele implica num confronto inevitável com nosso próprio interior. A Arte Contemporânea, antes de tudo, favorece a memória naquilo em que estimula a “comparação” com outros períodos. É também a convocação do suspense, a interrupção do tempo, a mobilização vaga pelo espaço, o resgate do instinto. A Arte Contemporânea exige que creditemos ao inconsciente a propriedade da memória, exige a abertura para o sentimento mais recôndito e para a magia do sonho. O estranhamento portanto deve ser o primeiro passo, a porta de entrada para o desafio do infinito. Deve reverter a situação de incômodo e resolver o impasse. Ficar imóvel diante de uma obra requer o reconhecimento de uma dignidade que hoje significa, inclusive, furtar-se de um cotidiano que não consegue oferecer mais do que o transitório. Por isso mesmo muitas vezes uma obra se configura no efêmero, de pouca duração e descomprometida com tudo que um dia inspirou o eterno. O registro contudo é necessário para que se preserve a lembrança da obra que um dia existiu. Pois o registro do observador no momento da exposição pode não durar mais do que o tempo de existência da obra. Por outro lado, essa mesma efemeridade pode estimular um registro que reflita sobre as circunstâncias dessa escolha, dessa ação, desse comportamento, enfim. Ver, observar, abrir-se à forma artística passa a ser então um movimento quase de tensão.
Tensão, estranhamento, deleite... A relação com a obra se cumpre finalmente. Formaliza-se enquanto busca, enquanto esperança na sensibilidade e não só no sensorial. Extraímos da forma o néctar, o substancial para seguir pelos dias.

2 comentários:

  1. Gostei da interação com as abelhas. Tenho feito pequenas análises que envolvem a relatividade ao nosso redor, assim como o teu texto que expõe a condição de abelhas humanizada.

    Gostei

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