Mais um
capítulo de OLHO DE VIDRO, de Márcia Tiburi. Ela o intitulou de “Estado de
Sítio ou Diante da Lei da Opacidade”.
Este capítulo
é, talvez, aquele em que Márcia mais se aproxima de uma contextualização
jurídica ou legal da Televisão. O termo “estado de exceção” (que faz parte do
subtítulo do livro: “A televisão e o estado de exceção da imagem”), quer
atribuir à imagem televisiva um papel análogo à fronteira entre política e
direito. Esse termo trata do ponto de vista jurídico/político, trata da
suspensão do vivente enquanto sujeito. Na verdade está-se fazendo uma
comparação da Televisão com a ordem militar “O telespectador precisa ser
pensado a partir da condição biopolítica que ocupa com seu corpo dócil diante
do aparelho que cativa sua percepção” (pg 156). Márcia conduz a tese no sentido
de que Televisão “decreta um estado de percepção a que convencionamos chamar de
realidade”. Aí está seu estatuto de
coisa instaurada, admitida como ordem ou norma, enfim, como realidade: o poder
místico da imagem.
Contudo, a
autora admite que, apesar da interferência dessa potência da imagem sobre o
sujeito, o olhar ainda mantém seus atributos que, em conexão à força do objeto,
se constrói numa dialética onde “a televisão é o totalmente visto que jamais é
realmente visto porque ela impossibilita que se veja” (pg 162). Nesse ponto
Márcia nos conta que Giorgio Agamben foi quem percebeu a semelhança da lei no
conto “Diante da Lei”, de Franz Kafka, com a função da Televisão, pois tal como
no conto, a televisão não exige nada, não impõe nada, está simplesmente aberta;
cabe ao telespectador (tal qual o camponês do conto) entrar e viver as
consequências.
Encerro este
trecho fazendo uma observação sobre a analogia feita por Márcia neste capítulo.
No conto “Diante da Lei”, de Kafka, todo o sabor pungente da narrativa está
concentrado no diálogo entre o sentinela e o camponês, no qual o primeiro nega
acesso ao segundo, que ao chegar diante da porta da lei pede autorização para
entrar. A negação do sentinela se estende sem que se ofereça uma justificativa
plausível para tal. A reação do camponês – fiel ao estilo kafkiano – é aguardar
pacientemente por dias, meses, anos, apenas intervindo na autoridade do
sentinela no sentido de conquistar sua licença para passar. Bom, seguindo a
proposta de Márcia Tiburi, ou seja, colocando no lugar da Lei a tela da
Televisão, me parece que a função do sentinela torna-se uma espécie de
provocação: o telespectador (no papel do passivo camponês), ao pedir licença
para entrar, encontra a negação do acesso como uma provocação ou estímulo do
seu “desejo de realidade”. Tal desejo não se cumpre porque esbarra numa
autoridade (o sentinela) mas se preserva e até se acentua, fazendo com que o
telespectador/camponês se mantenha firme na espera. Mas... e essa espera... o
que é? Que construção na vivência pode
ocorrer durante essa espera, o período de questionamento sobre a autoridade do
obstáculo e a ansiedade pelo acesso? Em Televisão acho que esse processo não
comporta uma visão tão simples como proposto por Márcia. A autoridade que
bloqueia a passagem ou a adia para “mais tarde”, fazendo com que o solicitante
permaneça diante da porta, me parece mais um agente do mundo externo do que
propriamente do mundo interno (lei/televisão). Ele oferece a manutenção desse “lado
de fora” na medida em que preserva o camponês/telespectador perto de si, numa
posição submissa porém isento das consequências do que acontece no lado de
dentro, ainda que – como se revela no final do conto – aquela abertura fosse destinada
ao solicitante. Contra a realidade almejada pelo solicitante (o lado de
dentro), o sentinela oferece uma outra realidade, pautada na obediência da
espera pela licença. No contexto da lei, porém, podemos aceitar que o
solicitante queira um direito, uma justiça, uma legitimação, um reconhecimento...
No contexto da televisão, o solicitante deseja tudo isso mas como prótese. No primeiro
caso a autoridade nunca poderá oferecer uma prótese da verdade, porque a lei
está somente ali, por trás daquela porta; mas no caso da televisão, o
solicitante poderá dispensar a prótese se a realidade do lado de fora se tornar
admissível.
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