Yoñlu
Enquanto interrompo a leitura do livro da Márcia Tiburi - por preguiça mas também por ter outras prioridades de leituras - vou postar aqui as impressões sobre um CD de um músico do Rio Grande do Sul, que infelizmente já é falecido.
Preciso esclarecer que meu ouvido é mais literário do que musical. Aliás eu não tenho conhecimento nenhum de música a não ser como apreciadora do trabalho de alguns artistas como Peter Gabriel, desde os tempos de Genesis, e talvez um pouco da MPB.
Vou escrever alguma coisa sobre as seguintes faixas (que estão nos dois CDs lançados postumamente): “Q-tip”, “Humiliation”, “I know what it’s like”, “Mecânica Celeste Aplicada(Luana)” , “Waterfall” e “Tiger”.
“Q-tip”. É uma música que chama atenção com suas cordas inofensivas que parecem nos conduzir para uma poesia musicada também inofensiva, mas... eis que surge no meio caminho um ruído... uma recorte de televisão, uma apresentação televisiva banal desses que assistimos todos os dias na TV, um locutor que deve apresentar as previsões meteorológicas e que está num dia péssimo e se atrapalha todo durante a locução do clima. Enquanto assistimos o homem do tempo se apavorar com seu trabalho, voltam as cordas, que agora caminham para um tom impiedoso, pesado, anunciante de um desfecho trágico de uma história que sequer tivemos chance de conhecer direito. Surgem gritos, gemidos, talvez uma morte. Não sabemos... (pelo menos eu não soube identificar). Parece que tudo é apenas televisão. Terminamos a audição com apenas uma certeza: estivemos reféns daquelas cordas, daquela melodia agradável e daquela estratégia, por alguns minutos... e nem nos demos conta disso.
“Humiliation”. Voz e violão, isso é tudo. E uma letra que expresse com harmonia toda a dor de ter que atravessar o inferno. E uma melodia que pergunta o sentido desse inferno. O próprio poeta responde da profundeza do seu infortúnio...
Mas se Dante visitou o inferno apoiado e guiado por seu mestre Virgílio, por que não fazer o mesmo, na companhia de um mestre também? Yoñlu tinha vários: João Gilberto, Caetano Veloso, Thom Yorke, Vitor Ramil, John Frusciante. Vê-se que eles estiveram presentes durante essa dolorosa travessia.
“I know what it’s like”. Parece um chamado, mas a voz demonstra algo como um relaxamento (embora a letra da música informe o contrário). Não nos detemos diretamente no pedido de socorro porque todo o ritmo tem algo de doce e leveza típica da MPB. O violão perambula por ruas ainda seguras e temos a certeza de dias bons. Mas a poesia grita. Grita numa voz suave a meio nasal (que a mim lembra um pouco Bob Dylan), que insiste em convencer que está tudo bem com o poeta.
Não, ele não está nada bem. A palavra não deixa dúvida: o poeta sofre e brinca de não sofrer para sobreviver. Dedilha o violão como um menino crescido nas rodas de boêmios, embora, na realidade, nunca tenha o hábito de sair para a boemia. A boemia parece-lhe um sonho. Eis o panorama que Yoñlu pinta nessa música e nessa poesia grandiosa, grave e coesa.
“Mecânica Celeste Aplicada (Luana)”. Mais uma vez sou atraída mais pelas palavras do que pelo ritmo. É vício de escritora... Nessa música, mais uma vez, Yoñlu nos engana com a leveza e com a suavidade de um ritmo, para nos mergulhar numa poesia crua. “O sol vê tudo” mas não vê o essencial. Eis a marca, talvez, de um momento dramático, pulsante, definitivo de Yoñlu. Ele sente que, por gostar de alguém, talvez possa viver a realidade, talvez possa assumir-se Vinícius. Mas a identidade que criara para se proteger do mundo está estabelecida. É difícil sair desse castelo, sobretudo para a noite, para a lua, para Luana. Assim, faz-se necessário observar o sol, que também não pode beijar a lua e permanece – como diria a poetisa Mara Senna – seu namorado eterno.
Mas essa eternidade dói demais. Ao mesmo tempo em que se coloca no lugar do sol, o poeta revela sua fragilidade diante do namoro não vivido, não declarado, não consumado.
“Waterfall”. Nas coisas que li aqui e ali na internet sobre Yoñlu, eu soube que um de seus sinais de bom humor era uma mania engraçada de, ao final de uma aula, perguntar ao professor “Mas e a relação com a água?”... A brincadeira agradava a classe e garantia ao adolescente deslocado uma imagem simpática perante os colegas. Mas acima dessa estratégia de sobrevivência psico-escolar podemos ver, na relação com água, algo mais profundo de Yoñlu: a questão da vida. Isso me parece claro nessa música que agrega violões pulsantes, vocais clamorosos como em prece - ainda que sem palavra - emergências sonoras dando sinais de algo lindo que virá. E vem. Temos batidas eletrônicas em ritmo cardíaco, acrescentadas de mais vozes vitais e contínuas que levam a um derramar abundante de água clara e pura.
“Tiger”. Deixei essa música para o final porque ela é a que mais me incomoda. Mas o incômodo é algo bom, magnífico, precioso, pois nos permite sair do banal. Sim, no que depender de nós, toda inquietação será despida!
Em alguns comentários que pude garimpar na internet, percebi que essa canção tanto pode ser adorada quanto odiada. Mas assim como qualquer obra que se encontra nessa súmula, “Tiger” é impossível de passar despercebida. É impossível ficar indiferente frente a uma música tão provocativa.
Em primeiro lugar Yoñlu faz aqui uma homenagem ao cinema ao se referir à saga de King Kong usando, porém, um tigre no lugar do animal herói. Essa comunicação me pareceu muito bem vinda porque traz à luz uma preciosidade do seu temperamento. O jovem músico, que gostava de gatos, humaniza um tigre na mesma medida em que animaliza o homem. Coisas de gênio!...
Como ele animaliza o homem? Simples: no meio da música Yoñlu implanta uns poucos segundos de uma fala em inglês de trás para frente. Sobre essa fala – incompreensível – ele sobrepõe algumas palavras dele em português que não informam nada de interessante, apenas alguns detalhes da gravação. E nós nos sentimos movidos a rodar a música no sentido inverso para saber o que foi dito no fragmento gravado de trás para frente. É assim que ele animaliza o homem: provocando sua curiosidade, sua racionalidade... exigindo que o homem se lembre do mito bíblico de Babel, quando Deus confundiu as línguas como castigo pela prepotência da humanidade. Temos então um ser humano impotente (desejando entender o desconhecido) e um tigre agindo com inteligência (ao convencer um ser humano fêmea de que a civilização não é tão bacana assim).
Mas além disso, do ponto de vista musical, quero chamar a atenção para a capacidade de Yoñlu costurar retalhos musicais. Imagino que construir numa única música um conjunto de ritmos seja uma tarefa ousada. Em “Tiger” os ritmos se alteram com precisão cirúrgica, conduzindo os ânimos do ouvinte sem que ele perca o chão (e se mantenha preso à música). Essa precisão eu já tinha ouvido em outra música de Yoñlu, “Yonner mix”, que eu garimpei na internet e que não está presente em nenhum dos dois CDs do músico. Enfim, fazer mistura é uma arte... É preciso misturar sem chocar ou repudiar aquele que vai provar a mistura. Ao contrário, a boa mistura seduz, atrai, domina.
lindooooooooo!
ResponderExcluirLindo texto, muito obrigado!
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