domingo, 6 de maio de 2012

o Mal na sala de visitas de Goethe

Se Goethe contribuiu, no projeto do "Sturm und Drang", com a língua alemã, acabou também contribuindo para confortar o espírito alemão, ao transportar o Mal (do mito faustiano) para a ficção. Com "Fausto" (a primeira parte publicada em 1801 e a segunda, publicada em 1832), o gênio alemão de Goethe concede a Mefisto voz e pensamento. Mostra seu comportamento e os traços da sua personalidade. Subtrai, assim, a figura demoníaca do seu meio folclórico (a lenda do homem que vende a alma ao Demônio tinha ganhado expressão através das chamadas volksbuch) para elevá-lo ao campo da Arte, da representação.  

A obra de Goethe tem duas partes, mas a que se popularizou mesmo foi a primeira. Ali está o drama do médico Fausto que assina um contrato comprometendo sua alma após a morte, em troca de conhecimento. Ainda vivo, porém, ele conhece o amor de Margarida e se arrepende do contrato, pois sua amada pertence a outro plano espiritual. Margarida está no plano do divino, pertence ao discurso sacro, ao mundo da fé. Fausto, pelo contrato, já não pertence a esse mundo; mudou-se para o plano racional da vida, comunga com o conhecimento sem limites, as artes sem moral, os prazeres do saber e da estética.

Mas por ser sempre insaciado e inconformado, Fausto despreza as barreiras que o separam de Margarida e a seduz. O resultado da intransigência: sua amada perde sua aura, perde-se... cai em desgraça, morre.

Está feita aí, na perdição de Margarida, a reconciliação do homem com sua consciência de ser limitado; está restabelecida a ordem contaminada pelo Mal. Mas muitas perguntas ficam no ar: se Fausto amou e se sentiu merecedor de amor, então por que rompeu com o plano do amor divino, aqui compreendido como o amor que salva, que resgata, que converte, como era a figura de Margarida?... Diferente de Dante, na "Divina Comédia", o herói faustiano se vê promotor da morte, eliminador da esperança, inimigo da fé... Se em Dante sua amada Beatriz (a conversão) já está morta (no Paraíso), em Goethe, a esperança de salvação aparece primeiro em vida, vulnerável, à mercê da ação de Fausto... E é por estar viva que Margarida não consegue converter o amado, mas ao contrário, perde-se por causa dele. Assim, a vida é o palco do Mal, para Goethe. É aqui que o Mal se articula, rompe num disfarce da natureza, num mandacaru, num cachorro, em qualquer coisa que possa chamar a atenção de um homem desesperado. Lança suas artimanhas e corrompe o coração fragilizado pela dor e pelo ódio. Ganha a mente talentosa e inteligente, sedenta de saber e ávida por desvendar mistérios. É no corpo vivo que o Mal se encarrega de operar sua força.

Mas se o Mal opera na vida, por que Fausto conheceu o amor depois de se tornar meio-vida-meio-morto?

Ou... o que seria então o amor redentor de Margarida?... Para Fausto, seria ele a verdadeira maldição?...

Fui assistir à peça A INCRÍVEL HISTÓRIA DE BENEDICTO FAUSTO E DE SEU IRMÃO PERSIVALDO O SONHADOR. Trata-se de mais uma leitura do clássico alemão. Aqui, Fausto é um brasileiro do Nordeste, uma alma opressiva com o sofrimento do seu meio, de um lado, e com o desejo de ruptura, de outro. Sob domínio de Mefisto, o ambicioso poeta do nordeste segue para São Paulo em busca de dinheiro e de "tudo que o dinheiro pode comprar". Deixa para trás o conformado irmão Persivaldo, que acredita na água (que Deus há de mandar). A peça traça as duas histórias, o irmão que permanece no plano do sagrado (Persivaldo) e o que segue as diretrizes da Razão (Benedicto).

Já enriquecido com a ajuda de Mefisto, o irmão rebelde acaba descobrindo outros problemas: sua vida de rico empresário enfrenta o conflito de classes. Fausto, que conheceu a miséria e foi vítima de exploração no passado, agora tem que combater aqueles se sentem explorados por ele. Como Mefisto tem a missão servir  Fausto durante sua vida, ele promove uma festa para acalmar os ânimos do proletariado e transmitir a ideia de que Fausto é um bom patrão.   E eis que a festa (estratégia mefistofélica) acaba se tornando palco do encontro de Fausto com a operária Margarida. Os dois se apaixonam, claro!... Fausto, porém, finge: não deixa a moça saber que ele é seu patrão. Estamos diante de dois mundos opostos: burguesia versus proletariado, razão versus sagrado.

A Margarida desta versão segue a tradição goethiana: acaba morrendo depois de ganhar consciência de que fora enganada por Fausto.

O Mal opera na vida. Ele não deixa Margarida acreditar que Fausto a ama de verdade. Ela acredita na diversidade dos mundos. Ela acredita na enganação do Demônio.

E Fausto?... No que ele acredita?... Por conhecer o amor após o pacto, ele acredita que Margarida lhe é uma provação?... Um sinal de Deus (que ele desprezara)?...

Na peça acima citada, do dramaturgo Luciano Dami, o Fausto nordestino deseja se salvar voltando ao nordeste e à companhia do irmão Persivaldo. É o retorno às origens como tentativa de restauração e correção dos erros. Percebemos neste Fausto um inconsciente  impulso contra as forças que o motivaram a sair do Nordeste: a mulher do irmão - a Margarida nordestina - é a continuação da provação, do infortúnio, da queda... a queda que se dera com a morte da Margarida operária paulista. Não há salvação em vida quando se assina um contrato com o Mal: Benedicto Fausto se suicida. Na morte, sem as fragilidades da doença da alma, Fausto é julgado favoravelmente graças a um poema dedicado à sua amada, antes de conhecê-la. É nesse amor sem destinatário que a peça mostra ao espectador uma parte fundamental do complexo de Fausto: o homem capaz vender a alma ao demônio em troca de coisas mundanas é também um homem de alma não-mundana... Por isso Fausto nunca deixara de ser metafísico.

O Mal... que possibilitara todo o quadro da tragédia de Benedicto Fausto torna-se também um Mal em vias de reflexão, de análise, de exame contínuo. O Mal precisa nos responder porque possibilitou a Fausto seu encontro com Margarida.

peça:  A INCRÍVEL HISTÓRIA DE BENEDICTO FAUSTO E DE SE IRMÃO PERSIVALDO O SONHADOR

elenco:  ALUÍSIO GENTILINE, JONAS VILLAR, BRUNO IAGO,  FÁBIO BOTELHO, FRANCINE ASSAD, GRAZIELE AMBROSIO, NATÁLIA COUTINHO

dramaturgia: LUCIANO DAMI

direção: ALUISIO GENTILINE





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