sábado, 30 de junho de 2012

olho de vidro - parte I

Esta é a primeira postagem de algumas que pretendem falar do livro OLHO DE VIDRO - A TELEVISÃO E O ESTADO DE EXCEÇÃO DA IMAGEM, de Márcia Tiburi. Ed Record. 2011 O livro é dividido em três partes: OLHO, TELA e DISTÂNCIA. Estou na primeira parte. O que dizer sobre o olho?... Qual a história do olho?... MT nos diz: "Neta da fotografia, filha do cinema e do rádio, a televisão é, no sistema de administração do sensível, o mecanismo poderoso e até mesmo a lógica que comanda o mundo da experiência visual, definindo-a como televisual" (pg 66). MT propõe que a televisão seja compreendida como um mecanismo produtor do olhar, o mesmo mecanismo que tem a capacidade de organizar o poder. O poder da televisão reside na sua tarefa de copiar ou imitar o corpo. O olho de vidro portanto é a metáfora que Márcia usa para apresentar a televisão como prótese do olho humano. O olho de vidro opera politicamente na medida em que "define um determinado tipo de relação dos seres humanos com as imagens". A potência da imagem consiste na sua imitação, repetição, espelhamento, processo que substitui a visão pela prótese, o olho que apenas ocupa uma cavidade mas que não vê. Com isso, compreendi que o vidro tem a função de refletir o rosto-olho daquele que olha, oferecendo no entanto uma imagem construída, produzida, pensada por alguém que está atrás do vidro. Trata-se de controlar aquele que olha através do controle da imagem oferecida. Trata-se da produção de uma consciência... "Como telespectador, estou dentro daquilo que está fora de mim, e estou fora daquilo que está dentro de mim. Esta subjetividade não simplesmente alienada, mas devolvida a si na forma de uma alienação escamoteada, é a subjetividade do que, em nós, é o telespectador. O aparelho televisivo é o dispositivo que arranja esta subjetividade". (pg 76) A parte que trata do OLHO ainda tem muito mais pela frente. Mas quero terminar este primeiro momento lembrando minha avó, uma mulher que nunca teve televisão em casa. Lembro de um instante da minha infância em que minha avó nos fora visitar e, incomodada em ver a televisão ligada, disse em tom de autoridade, apesar da doçura: "televisão e mágica não deveriam existir; fazem uma coisa virar outra sem deixar a gente saber como é feito. Isso não é bom".

domingo, 24 de junho de 2012

Nas próximas postagens pretendo mostrar minhas impressões sobre o livro "Olho de Vidro", de Márcia Tiburi.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

conto: MENTA

 
  Era verão, embora a tarde não estivesse tão quente que não se pudesse suportar uma exposição de dez minutos ao sol. Mas enfim, estávamos há quase meia hora sob aquele sol brilhante, o que já começava a mudar nosso ânimo. A espera pela abertura dos portões imensos e cinzas do estádio, onde aconteceria o show, era quase um suplício... Ou, ao contrário, uma doce espera! Porque sabíamos que assim que aqueles monumentais portões se abrissem todos nós ganharíamos o campo e estaríamos prontos para um grande espetáculo.
 
   Eu estava ali sendo espremido, tocando e sendo tocado sem ter como evitar. Os meus pés procuravam dividir o espaço com tantos outros pés; às vezes eles perdiam o chão e depois de alguns segundos o reencontravam. Tentavam se firmar mas um leve movimento da massa os fazia perder o chão de novo. Um movimento mais brusco de algumas pessoas causava uma espécie de onda que nos embalava a todos; a todo instante balançávamos como se estivéssemos juntos numa embarcação. Éramos tão unidos que o sol parecia querer nos derreter para formar de nós uma massa compacta e depois moldar essa massa até dar a ela uma forma qualquer, porém uma única forma. Às vezes eu até me preparava para começar a fundir meu corpo aos dos outros. Só acordava do delírio quando alguém gritava “vai abrir” e todos gritavam qualquer coisa em seguida, como uma forma de tomar impulso para a correria que viria a seguir. Mas os portões impiedosos resistiam à nossa pressão ou se mantinham imóveis só para nos torturar. O problema é que, com a demora, o sol e a ansiedade, naturalmente fomos nos comprimindo mais e mais e mais enquanto aumentava a vontade de entrar. Os dedos dos meus pés lutaram várias vezes tentando alcançar o chão, mas a massa forçava tanto que cheguei a ser mantido suspenso por um bom tempo. O medo de perder o equilíbrio, e sofrer um acidente quando começasse a correria, me fez criar coragem de me agarrar ou apoiar com as mãos sobre ombros e cinturas alheias. E por que eu deveria evitar isso se estavam fazendo o mesmo comigo?

   Tudo parecia brincadeira de mal gosto dos organizadores: os portões não se abriam, os minutos se tornavam eternidade, as individualidades se condensavam. Já não se podia, caso alguém decidisse, sair dali e voltar para casa ou procurar uma sombra, pois a compressão imobilizava sobretudo os que estavam no centro da aglomeração. Quanto mais a pressão crescia, mais difícil ficava manter a consciência. Pensei que acabaria espirrado para cima ou esmagado como uma banana.

  Mas quando consegui me restabelecer, percebi que os sentidos saíam da anestesia e queriam captar tudo; e se, por um lado, a visão era comprometida pela luz forte do sol, por outro, o olfato compensava essa perda. Notei isto quando senti um hálito de menta invadindo meu ar. Eu estava absolutamente lançado em outra esfera, conduzido por um instinto talvez animal ou sobre-humano, mas com certeza resgatado do meu mundo. Naquele instante eu sabia que devia registrar na minha memória aquele cheiro como uma condição para a preservação daquele momento único, o momento em que eu era milhares de eus. A pastilha de menta não estava na boca de alguém próximo de mim mas sim dentro de mim, selando uma espécie de contrato que eu fizera com aqueles estranhos quando caminhamos todos para um mesmo espaço e nos submetemos ao mesmo domínio improvisado. A pastilha estava no universo.

   Aquele aroma de menta me mostrou o quanto eu era promíscuo e tendente ao bloco. Estávamos todos ali confundidos num sistema de corpos, sons, memórias de sons que queríamos escutar no palco. Memórias de corpos que em outros tempos foram confundidos em outras circunstâncias. Desejei então sentir na minha boca o gosto de menta que vinha de outra boca. Ou desejei firmar um elo com a boca que me transportava para o meu berço. Busquei a fonte do meu delírio e encontrei. O estranho ou a estranha que saboreava a pastilha atendeu ao meu desejo. O toque e a comunhão com aquela boca eliminaram qualquer dúvida que pudesse haver sobre meu poder de me propagar pelos séculos. Fui subtraído da civilização e da história da evolução da espécie humana para aquele beijo.

   Finalmente chegava o tão aguardado instante, não necessariamente de libertação, mas sobretudo de apreensão, pois um segundo de descontrole dos movimentos acarretaria um tombo. Despedi-me do estranho e flutuei por alguns metros até chegar aos guichês onde finalmente perdi o equilíbrio e caí. Vieram todos os outros eus e me pisotearam. Não senti dor; talvez tenha desmaiado. Acordei no hospital e percebi, portanto, que havia perdido o espetáculo.